Psicanálise da Vida Cotidiana: Manoel de Barros e a Psicanálise – 13/05/2015

 

“A poesia de Manoel de Barros é feita de restos, de sobras, de dejectos. Como ele diz em um poema: de “inutensílios”.
É uma poesia que se instala nos primórdios, quando as palavras ainda se confundem com as imagens”.
José Castello, 2015 in “Manuel além da razão”.

 


Ao fazer uma leitura sentida e pensada do último livro publicado sobre o poeta Manoel de Barros —–“Meu quintal é maior do que o mundo –Antologia”, publicado pela Editora Alfaguara, com poemas selecionados por Martha Barros e prefácio de José Castello, senti profundamente uma relação entre a prática psicanalítica e o ofício do nosso poeta maior.
Já na introdução de Castello –“Manoel além da razão”, uma bela composição, fica muito evidente como nosso crítico escreve algumas passagens que me faz lembrar o que S. Freud chamava de “atenção flutuante”: um recurso técnico que o analista usa, ou melhor, uma atitude permanente do psicanalista ao analisar, ao ouvir seu analisando. Um estado meio dormindo, meio acordado, estado de “negatividade”, de não ter intenção de compreender, explicar, teorizar ou necessariamente interpretar. Ouve-se o analisando ou paciente como Manoel ouve para poetar: “É uma poesia que se instala nos primórdios, quando as palavras ainda se confundem com as imagens. Ela confirma, assim, o caráter inútil, isto é —não pragmático, indiferente aos resultados — que a define. Como ele mesmo nos diz no “Concerto a céu aberto para solos de ave: “Passei anos me procurando por lugares nenhum./ Até que não me achei — e fui salvo.” O psicanalista também em seu ofício, em seu fazer analítico, procura ficar nesse “estado poético”, perdido se achando, numa escuta que privilegia não a razão, a racionalidade, o querer entender e compreender, e sim a capacidade de escutar o “inaudível”, aquilo que os sentidos não captam necessariamente —- o Inconsciente. E como diz nosso poeta, diz também o psicanalista: nosso ofício é feito sobre as informações dos restos de memória, dos atos falhos, dos pares de opostos, ou seja, daquilo que se esconde sob a fala racional. “Os defeitos, os desvios e o desprezível” como queria Manoel, são as veredas por onde caminha o par analítico — o analista e o analisando na sala de análise.
Quem vive e já viveu a experiência de se submeter a uma análise sabe o que escrevo, e os que não viveram necessitam viver um estado que chamo de “poético”, estado disponível a sonhar experiências esquecidas e angústias não vividas, na vida e na hora da análise. 
Hoje é tema freqüente nos corredores psicanalíticos a questão da importância do Negativo, do não saber, do negativizar o que sabemos para aprendermos algo novo. Pois bem, Manoel de Barros tem um livro, talvez um dos seus tesouros poéticos mais significativos —-“Livro sobre o nada” — onde aparece coisa desse tipo: “A sensatez me absurda”; “Só o obscuro nos cintila”; “Prefiro as linhas tortas”; “Só as coisas rasteiras me celestam”; “Sei que fazer o inconexo aclara as loucuras. Sou formado em desencontros… Os delírios verbais me terapeutam.”; “E sei de Baudelaire que passou muitos anos tenso porque não encontrava um título para os seus poemas. Um título que harmonizasse os seus conflitos. Até que apareceu “Flores do Mal”. A beleza e a dor. Essa antítese o acalmou. As antíteses congraçam”.

 

Em psicanálise a experiência passa por isto também. Somos movidos pela curiosidade em observar, tanto o psicanalista como seu analisando. Observamos as desarmonias, as dissonâncias, os paradoxos, os desencontros e tudo aquilo que povoa o inconsciente — desde o antes das palavras, os gestos, os sons, o silencio, a postura, os atos, até o começo da linguagem verbal que se distancia da racionalidade e se aproxima da experiência emocional da vida, do ódio, do amor, da bondade e da maldade, do generoso e do egoístico, do nascer e morrer, do viver e se transformar. Somos espécimes em transformações, em aberto, sem necessária resolução pragmática nem cura eterna. Somos pessoas se fazendo, dia a dia, que se descobrem nos “desencontros” e se curam nos “delírios verbais”. Escutem essa maravilha de alumbramento do nosso poeta, ainda nos poemas do seu livro sobre o Nada, no poema “As lições de R.Q.”: “Aprendi com Rómulo Quiroga ( um pintor boliviano ): A expressão reta não sonha/ Não use o traço acostumado./ A força de um artista vem de suas derrotas./ Só a alma atormentada pode trazer para a voz um formato de pássaro./ O olho vê, a lembrança revê, e a imaginação transvê./ É preciso transver o mundo./ Isto seja: Deus deu a forma. 
Os artistas desformam./ É preciso desformar o mundo:/ Tirar da natureza as naturalidades./ Fazer cavalo verde, por exemplo./ Fazer noiva camponesa voar —como em Chagall./ Agora é só puxar o alarme do silêncio que eu saio por aí a desformar./ Até já inventei mulher de 7 peitos para fazer vaginação comigo”.
O poeta e o psicanalista trabalham em sintonia — da linguagem não verbal, dos silêncios e da conversação verbal ou a escrita que se faz poema. Procuram no subterrâneo das vivências emocionais tudo que foi recalcado, negado, escondido entre os escombros do nascimento e do antes do nascer. “Os delírios verbais me terapeutam” diz o poeta, assim como as falas desconexas, as associações livres, os sonhos não sonhados, os pesadelos, o não pensado, os nossos delírios diurnos e do sonho no sono. Todos esses fenômenos são a matéria prima do “fazer psicanalítico” e da linguagem poética, nesse mundo de exigências positivas, pragmáticas, iluministas e positivistas. O homem só cresce suportando as incertezas, tolerando sua mortalidade, sofrendo sem enlouquecer de fato, com sua condição de vulnerabilidade. A onipotência, o desejo de onisciência e a vontade ser “Deus” desumaniza o homem, faz com que ele não possa entender “as vozes dos pássaros”, a riqueza dos silêncios antecipatórios do pensamento. 
Com o poema “O Andarilho” termino essa crônica:

…Não tenho pretensões de conquistar a inglória perfeita.
Os loucos me interpretam.
A minha direção é a pessoa do vento.
Meus rumos não têm termômetro.
De tarde arborizo pássaros.
De noite os sapos me pulam.
Não tenho carne de água.
Eu pertenço de andar atoamente.
Não tive estudamento de tomos.
Só conheço as ciências que analfabetam.
Todas as coisas têm ser?
Sou um sujeito remoto.
Aromas de jacintos me infinitam.
E estes termos me somam.

 


 

Carlos de Almeida Vieira – Médico, Psiquiatra, Psicanalista da Sociedade de Psicanálise de Brasília SPBsb, Membro da Federação Brasileira de Psicanálise –  FEBRAPSI e da International Psychoanalytical Association IPA/London

Coluna publicada todas as quartas-feiras no “Blog do Rádio do Moreno” de O Globo

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