Os raios solares de uma manhã de abril penetravam no interior da Igreja, a Matriz de Nossa Senhora da Conceição do Paraíba, numa cidade do interior do nordeste. Frente ao altar um pano retangular, preto, tendo ao seu centro uma cruz branca. Numa lateral do templo, um órgão, madeira de lei construído no século XIX, com seus botões verticais, brancos e seus pedais de um cromado misturado com borracha. Sentado nele, Esperança se posiciona já dando seus acordes de afinação e esperando o começo da missa de sétimo dia. A igreja repleta de fiéis que faziam uma homenagem ao Senhor Prefeito, viúvo há sete dias, quando sua digníssima esposa morrera de uma enfarte fulminante aos cinqüenta e dois anos. Corria pela cidade uma lenda que dona Judith era uma mulher austera, um tanto agressiva, impulsiva, de um temperamento epileptóide. Vai ver que por isso enfartou…
Esperança tinha mãos esbranquiçadas, deixando entrever vênulas e veias num desenho anatômico que mostrava uma pele extremamente fina, transparente e vulnerável. Olhos de um verde esmeralda, lindos, todos os dois, lindos projetando um olhar celestial, sublime, de uma leveza e penetrabilidade macia e gostosa. Era uma virgem, virgem na expressão legítima da palavra, passou sua vida como uma Carmelita descalça que oferece tudo a Cristo. Generosa, profundamente afetiva, intuitiva e de uma candura que mais parecia uma flor azul de aspecto gentil e amoroso. Morava ao lado da Matriz e, desde seu acordar passava o dia arrumando o altar, limpando os cálices, arrumando as hóstias, passando a ferro os lençóis e paninhos que ornamentavam o altar e a sacristia. Fiel ao pároco, mulher de comunhão diária, pura, incapaz de uma expressão de raiva, de intolerância diante de qualquer frustação. Sua arte maior era tocar no órgão da igreja, tendo sempre ao seu lado, sua irmã Virginia, uma soprano capaz de chegar a agudos sem tremer sua voz.
O padre Marcos já havia começado a missa de réquiem. Momento sublime — O Gloria. Esperança com seus alvos dedos que dançavam entre o teclado e os botões em perfeita sintonia, com seus pés pressionando os pedais emitia melodia e harmonia numa perfeita conjunção. Virginia soava seus agudos e às vezes também os graves, exaltando a glória a Deus e o agradecimento às dádivas do divino. Ao lado do pároco da Matriz, o coroinha, vestindo uma batina vermelha com um roquete branco, segurava o turíbulo e quando o entregava ao padre punha incenso num ritual fúnebre em honra à esposa do Silveira, o Prefeito. Esqueci de dizer que Ricardo, o coroinha, era sobrinho de Esperança, aliás, era mais do que sobrinho, era um verdadeiro filho dela. Certa ocasião houve uma grande enchente que inundou a maior parte do município o que fez o Prefeito declarar estado de calamidade pública. Semanas após a tragédia, outra tragédia — um surto de febre tifóide consegue matar dezenas e dezenas de habitantes. Ricardo pegou tifo também. Alta temperatura, tremores sucessivos, sudorese abundante, começou a ter umas visões deformadas, vendo as pessoas se transfigurarem, diminuírem e aumentarem de tamanho, ouvia ruídos estranhos e visões de pássaros que voavam dentro do seu quarto. Ficava em estado de pânico. Lá estava Esperança, cuidadosa, afetiva, generosa e presente todo o tempo em que seu sobrinho sofria a danada da febre tifo. Por pouco, pouco mesmo, Ricardo não morreu, foi salvo porque o médico da cidade, primo de sua genitora, trouxe da capital do Estado, cloromicetina, a salvação da maioria dos enfermos da febre.
Esperança sempre perto do seu sobrinho, dedicada como uma enfermeira, como uma freira, como uma verdadeira mãe. Cantava ao pé da cama canções de ninar, canções folclóricas e cânticos religiosos que faziam o menino suportar suas dores, sua febre e seu intenso medo de morrer. Cochichava com sua irmã que, pela janela da casa via passar algumas carroças com cadáveres de pessoas que sucumbiram à febre. Ricardo não podia saber, nunca!
Meu maior réquiem não é o cântico de luto pela perda da mulher do Prefeito e sim, hoje, após anos e anos, a dor de que Esperança já não convive mais com seu sobrinho querido, não toca mais na igreja e faz uma falta medonha ao pároco. Um último encontro de Ricardo com sua tia querida, ela estava sofrendo de Alzheimer e não se comunicava mais com ninguém. Ele chegou perto dela, cantou algumas canções daquela época e, de repente viu lágrimas saírem dos olhos dela e pensou: será verdade que quem tem Alzheimer perde o contato afetivo com as pessoas e o mundo ou essa bendita doença é um modo de se defender, de se isolar, quem sabe de um mundo atual hostil demais? Não se ouve mais dizer que as pessoas têm arterioesclerose!
Ricardo ainda hoje, quando nos encontramos sempre lembra da sua Esperança, seu anjo de olhos azuis e um dos maiores amores que ele teve em sua vida. Agora lembrei não sei por que, ou sei, de um poema de Ledo Ivo, poeta alagoano e ícone da nossa Literatura, em seu livro –“Mormaço”.
“Decerto ou Talvez”
Nunca me disseste onde posso encontrar Deus.
Na minha frente? Ao meu lado? Seguindo-me na rua
quando passo para o outro lado com o sinal vermelho?
Dentro de mim, na circulação do meu sangue
Ou nos sonhos que me perseguem desde a infância?
Talvez a Sua morada seja entre as estrelas, no espaço.
Além do meu alcance, como os pássaros e os cometas.
Estará no vôo de um mosquito ou no movimento imperceptível
das galáxias?
Na maré? No mormaço? No solstício do verão?
Faço-te estas perguntas o dia inteiro e não me respondes.
Talvez Deus esteja em teu silêncio. Decerto ou talvez.