Psicanálise da Vida Cotidiana: Ser e não Ser: eis a questão! – 10/06/15

Quando Sêneca, filósofo e senador grego, soube de Marta, uma mulher que havia perdido seu filho e caíra numa depressão profunda, resolveu escrever-lhe uma carta. Naquela época, o filósofo e seus colegas criaram um grupo denominado Consoladores de Almas: pessoas experientes, (filósofos e intelectuais) que através de visitas domiciliares ou de epístolas, cartas, levavam às “almas doloridas”, uma palavra, um conselho, interpretações, enfim, palavras no sentido de aliviar suas dores psíquicas. Existe um belo livro, Cartas Consolatórias, composto de cartas escritas por Sêneca a pessoas que sofreram perdas e à mãe dele, quando do seu exílio, falando da experiência de separação.

O que surpreende em sua carta à Marta é uma passagem em que Sêneca diz que a morte do seu filho já estava anunciada no dia em que ela o pariu. A mortalidade, a finitude, são condições intrínsecas da natureza viva, da natureza humana. Daí o nosso ser, antes de tudo é mortal, finito, passageiro. O aparecimento da vida denuncia a morte, pois vida e morte são um conjunto, um par, e não fatos excludentes.

Bom, hoje quero me referir não especificamente à mortalidade, mas o que podemos ser, entre o ato da chegada e da partida, o que podemos ser na vida, se é todos nós alcançamos esse estatuto de SER!

Ter um corpo, uma mente, uma origem, pais, uma filogênese, não significa necessariamente que adquirimos uma identidade própria. Iniciamos a vida num grito de socorro, numa ventania de angústia, em busca de alguém que nos proteja da precariedade da nossa condição humana. Necessitamos do Outro para sobreviver. São os nossos pais que nos dão um nome, um sobrenome, o que não quer dizer que dão uma personalidade, um Ser a nós. Ser é uma conquista, uma luta incessante para encontrar uma individualidade, uma marca, um estilo próprio, É uma experiência ousada, corajosa, pois vamos encontrar no meio do caminho, na estrada, sempre alguém desejando nos “carimbar” com seus ideais. Ser é angústia, é dor de se fazer, mesmo que esse fazer não signifique que temos de jogar fora os exemplos bons que nos deram. É óbvio que também somos, ou melhor, que albergamos dentro de nós aspectos dos nossos ancestrais, dos nossos pais, da educação que nos foi dada, da cultura, das ideologias, dos aspectos filo e ontogenéticos.

No entanto, querer ser, abdicar do “faz de conta para ser amado”, arriscar um jeito íntimo, criar e desenvolver um espaço interno próprio, sem que isso tudo não nos faça, nem desprezar os outros nem criar um “refúgio autístico”, fantasia de onipotência e autosuficiência. Podemos ser originais, mas nossa cultura, principalmente a cultura judaico-cristã, sempre teve e terá um peso enorme, atrapalhando a originalidade, a liberdade e a possibilidade até, para não querer ser, ser um sem-ser.

Na minha experiência psicanalítica, às vezes percebo que atrás dos gritos de loucura e dos pesadelos diurnos das crises ditas “existenciais” repousa um sintoma da dificuldade de ser-si-mesmo. Um dia, Zorba o Grego afirmou que “para ser livre é preciso ser louco”. Não uma loucura insana de hospício, mas uma loucura criativa, emancipatória, ousada, para subsidiar ter um nome, uma marca própria, uma identidade.

Certo dia, encontrei um amigo de infância e adolescência, e de súbito, pregando os olhos em sua pessoa, observando seu jeito, confidenciando mutuamente experiência de nossas vidas eu lhe disse: Henrique, você não é mais o filho da Dona Maria, aquele menino meio atoleimado. Tampouco se parece mais com seu pai! Ao que ele respondeu: olha cara, muito obrigado, obrigado mesmo. Fico muito contente em você enxergar que sou outro, um outro, eu, Henrique, não o “filho da dona Maria”. Que bom! Você me faz muito bem com sua observação! Obrigado.

Lembro-me que vi em seus olhos castanhos o brilho da individualidade, a beleza de ser, a tonalidade da sua própria composição, a sua pessoa. Ser é isso, é reconhecer que somos originados pelos outros, mas a dimensão do “mim mesmo” deve ser uma conquista minha. E olha que é sofrido, pois nascemos e crescemos ouvindo frases: você vai ser engenheiro quando crescer; aquela moça é o seu melhor partido para esposa; nunca faça isso ou aquilo que seus pais não aprovam; seja o “filhinho querido da mamãe e do papai que você terá tudo que desejar”. Pactos perversos entre pais e filhos para o Não Ser.

Ainda que sabendo e respeitando o Ideal de desejo dos outros, procurar ser é uma tarefa difícil, sofrida, longa, mas vale a pena. A sociedade atual parece que a cada dia cria uma cultura do TER e não do SER. O individualismo moderno não oferece uma estrutura estável de personalidade, mas uma fuga, um refúgio, uma impossibilidade de ter uma essência em convivência societária.

Drummond, o nosso querido Carlos Drummond de Andrade, derramou as palavras de sua intuição poética, e eu diria também filosófica, sobre a questão da essência humana, em seu poema:

 

“Que vai ser quando crescer? Vivem perguntando em redor.
Que é ser? É ter um corpo, um jeito, um nome? Tenho os três.
E sou? Tenho de mudar quando crescer? Usar outro nome, corpo e jeito?
Ou a gente só principia a ser quando cresce?
É terrível, ser? Dói? É bom? É triste? Ser: pronunciado
Tão depressa, e cabe tantas coisas? Repito: ser, ser, ser. Er. R..
Que vou ser quando crescer? Sou obrigado a? Posso escolher?
Não dá para entender. Não vou ser. Não quero ser. Vou crescer assim mesmo.
Sem Ser.

In, Boitempo & A falta que ama. 1968, Poesia Completa, RJ. Nova Aguilar.

 


 


 

Carlos de Almeida Vieira – Médico, Psiquiatra, Psicanalista da Sociedade de Psicanálise de Brasília SPBsb, Membro da Federação Brasileira de Psicanálise –  FEBRAPSI e da International Psychoanalytical Association IPA/London

Coluna publicada todas as quartas-feiras no “Blog do Rádio do Moreno” de O Globo

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