“Impossível fugir a essa dura realidade”
Vinicius de Moraes, “o poetinha”, não como sentido pejorativo que alguns falsos intelectuais ainda desejam mas um apelido delicado, amoroso e reconhecedor de um dos grandes poetas que nossa Literatura alberga. Vinicius, “o preto mais branco do Brasil”, a alma miscigenada que traz em si os “sertões” e a cidade grande. Os “sertões” uma vez que nosso poeta cantou em prosa, verso e música o morro, os excluídos, os sertanejos da cidade maior, os menos sortudos desse nosso país que mantém diferenças brutais de classes, preconceitos, e de uma filosofia econômica e tecnocrata onde o Ter substitui o Ser.
Vinicius é amor, paixão, coragem, irreverência, ousadia, além de ser um gênio. Um artista que como todos os gênios conseguem doar em beneficio público a sua inquietude interior, a sua “loucura sana”, a sua capacidade de ver o que os ditos “normais” não enxergam e de intuir o indizível transformando tudo isso em Arte, Poética e Música.
Vinicius sempre viveu a mais complicada forma de viver dos humanos: capacidade e competência de viver o presente. Na “Nova Antologia Poética”, publicada pela Cia. Das Letras (2012), logo no introito, estampa uma frase que define nosso poeta: “ Meu tempo é quando”.
Minha intenção nessa crônica de hoje é enfatizar a atualidade da obra de Vinicius. Escrevo atualidade uma vez que sua obra é por demais contemporânea, sua obra é clássica, entendendo por Clássico todo escritor que perpassa seu tempo e se mantém presente, atual, mostrando que seu escrito tem uma dimensão perene e imortal.
Relendo seus poemas me daparei mais uma vez com um deles, que a meu ver, canta em versos a real, alegre e triste situação na qual nosso pais e nossa população vivem. O poema é “ O Dia da Criação”, poema inspirado no livro do “Gênesis”, 1,27 na Bíblia – “Macho e fêmea os criou”.
Transcrevo alguns versos:
“Hoje é sábado, amanhã é domingo/ A vida vem em ondas, como o mar… Hoje é que é o dia do presente/ O dia é sábado.
Impossível fugir a essa dura realidade/ Nesse momento todos os bares estão repletos de homens vazios/ Todos os namorados estão de mãos entrelaçadas… Nesse momento há um casamento/ Porque hoje é sábado/ Há um divórcio e um violamento/ Porque hoje é sábado/ Há um homem rico que se mata/ Porque hoje é sábado…Há uma mulher que apanha e cala/ Porque hoje é sábado/ Há um renovar-se de esperanças/ Porque hoje é sábado…Há um grande espírito de porco/ Há uma mulher que vira homem/Há criancinhas que não comem/ Há um piquenique de políticos/ Há um grande acréscimo de sífilis/ Há uma tensão inusitada/ Há vampiros pelas ruas/ Há um grande número no consumo/ Há um garden-party na cadeia/ Há damas de todas as classes/ Umas difíceis, outras fáceis/ Há um beber e um dar sem conta/ Há um frenesi de dar banana/ Há a sensação angustiante/ De uma mulher dentro de um homem… E dando os trâmites por findos/Há a perspectiva do domingo/ Porque hoje é sábado”.
A poética do “poetinha” mostra, descreve, denuncia que pouca coisa mudou, que nossa realidade atual repete, repete para não mudar. Sociedade fascinada pelo vampirismo do Ter esquece ou não sabe que a única forma de parar essa tensão inusitada, esse piquenique de políticos e essas criancinhas que não comem é focar na responsabilidade da Educação, da Saúde e da real Distribuição de Renda. Vivemos tempos de incertezas, dúvidas e pouca esperança; co-habitamos com crimes hediondos, assaltados com assassinatos, apropriação criminosa do dinheiro de nossos impostos; vivemos uma total insensibilidade pelo humanismo; somos a cadia surpreendidos por escândalos de corrupção e de morosidade da Justiça nos crimes mais banais; se vamos à praia, somos assaltados; se saímos para um jogo de futebol podemos ser vítimas de uma bala perdida; se os jovens começam a universidade não têm mais a certeza de pagar seus empréstimos(?) aos bancos vorazes, e as promessas governamentais de efeito eleitoreiro pululam na contramão das “vozes angustiantes das ruas”. Escreveria páginas e mais páginas relatando e descrevendo a “análise da vida cotidiana” mas prefiro deixar o leitor com um fragmento de outro poema, não menos atualíssimo do cantor de Itapoã: “Carta aos Puros”
“…Ó vós que vos comprais com a esmola feito aos pobres
Que vos dão Deus de graça em troca de alguns restos
E maiusculizais os sentimentos nobres
E gostais de dizer que sois homens honestos.
…Ó vós, homens da sigla; ó vós, homens da cifra
Falsos chimangos, calabares, sinecuros
Tende cuidado porque a Esfinge vos decifra…
E eis que é chegada a vez dos verdadeiros puros”.