Psicanálise da Vida Cotidiana: A falta que ama – 07/10/15

 

 

“Entre areia, sol e grama/ o que se esquiva se dá,/ enquanto a falta que ama/ procura alguém que não há./ Está coberto de terra;/ forrado de esquecimento./ Onde a vista mais se aferra,/ a dália é toda cimento./ A transparência da hora/ corrói ângulos obscuros:/cantiga que não implora/ nem ri, patinando muros./ Já nem se escuta a poeira/ que o gesto espalha no chão./ A vida conta-se, inteira,/ em letras de conclusão. / Por que é que revoa à toa/ o pensamento, na luz?/ E por que nunca se escoa/ o tempo, chaga sem pus?/ O inseto petrificado/ na concha ardente do dia/ une o tédio do passado/ a uma futura energia./No solo vira semente?/ Vai tudo recomeçar?/ É a falta ou ele que sente/ o sonho do verbo amar?”.

Drummond, o mineiro de Itabira sempre passeando entre a memória, a melancolia e a força de querer o futuro, o depois, o que virá, mesmo sabendo que não sabe se virá. “Enquanto a falta que ama/procura alguém que não há./ a dália é toda cimento; por que revoa à toa o pensamento, na luz? No solo vira semente? Vai tudo recomeçar? É a falta ou ele que sente/ o sonho do verbo amar”.
Angústia, temor, terror, descrença, petrificação do afeto? Não há mais amor, ou não há ainda o amor que tanto o poeta sonhou, ou que faz com que todos nós sintamos sua falta? A vida começa com um sonho, uma alucinação do “objeto” do desejo. Encontra-se? Existe? Ou existem algumas semelhanças do desejo, e não a “realização alucinatória do desejo”, como tanto escreveu o “bruxo de Viena”, o famoso e eterno Dr. Freud? A “falta que ama” não é só um poema, é uma viagem pelas questões do Ser, por aspectos psicológicos de suportar o “não vindo”, o “perdido”, ou mesmo, a saudade do tempo em que não conhecia quem hoje temos.
Esse livro de Carlos Drummond é um percorrer por experiências da ausência, do ter, do perder, do resgate e da capacidade de tirar proveito desse não ter. Carlos, o gauche, a personalidade um tanto depressiva e melancólica não se rendia ao negativo, à ausência do alucinado, à perda do tido. Nosso itabirano, que em sua obra passeia desde os rincões das Gerais ao arquitetônico e litorâneo da Cidade Maravilhosa, sempre soube tirar vantagem do seu ser melancólico. O artista, o poeta, o escritor têm, como dizem hoje, “um up” em relação às pessoas comuns: sabem fazer da dor a leveza de viver; conseguem extrair da angústia, daquilo que chamo de “loucura sana”, transformações psíquicas em direção ao crescimento e à capacidade de colaborar para que elaboremos nos impasses existenciais.
No Posfácio do livro, escrito de um modo também poético e filosófico por Marlene de Castro Correia, na edição da Cia. Das Letras, 2015, lemos um olhar sábio da crítica: “Se a” falta que ama” não propõe rupturas nem reviravoltas do percurso do autor, traz, no entanto, um acento novo à sua reflexão sobre “o estar-no-mundo”. Nos livros que o antecedem, a ênfase da indagação existencial incide em especulações sobre o sentido da vida, no anseio de explicação para o mundo, no embate com o transcendente e a busca de uma causalidade superior”.
O livro é composto de 28 poemas que a despeito da Falta o autor vai em busca de inovação, de sublimações e de um jeito seu de suportar essa falta e não tornar-se um depressivo. A tristeza é uma marca de Drummond e, na tristeza se cria, na depressão a criatividade é abortada, pois o que predomina é o “ódio à realidade”. É o que vemos em dos poemas do livro “Elegia Transitiva”, quando no final o poeta canta:” Onde habitas agora,/ como saber tuas joias errantes?/ Que ardil para imaginar o novo corpo/ onde se esboça a lucilação/ diversa, e outra música?/ Lento, conhecer, obscuro, ter conhecido;/ e em nosso museu desapropriado a angústia passeia/ altas perguntas sem contestação….”Viajar é notícia/ de que ficamos sós/ à hora de nascer”. Em outro poema: “Qualquer Tempo”, arremato uma ideia nesses versos do poeta:”Tempo, contratempo/ anulam-se, mas o sonho/ resta, de viver”.
“A Falta que Ama” é oferta de Drummond para ainda acreditarmos nos constantes “resgates” que é saudável se ter, durante uma vida de presenças e ausências.

 

 

 

 

Carlos de Almeida Vieira – Médico, Psiquiatra, Psicanalista da Sociedade de Psicanálise de Brasília SPBsb, Membro da Federação Brasileira de Psicanálise –  FEBRAPSI e da International Psychoanalytical Association IPA/London

Coluna publicada todas as quartas-feiras no “Blog do Moreno” de O Globo

 

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