Há na Literatura Brasileira, especialmente naquilo que diz respeito ao estilo Conto, um dos trabalhos mais significativos e profundo feito pela sensibilidade e genialidade de Machado de Assis. O conto a que me refiro chama-se: “O Espelho: esboço de uma nova teoria da alma humana”. Em 1882, nosso ícone publicou um livro no qual continha entre outros contos, como por exemplo: “O alienista”, “Teoria do medalhão”, e tantos outros de suma importância.
O Espelho, em resumo, conta uma engraçada e triste história de um homem de 25 anos, pobre, que acabava de ser nomeado alferes da guarda nacional. “Não imaginam o acontecimento que isto foi em nossa casa. Minha mãe ficou tão orgulhosa! Tão contente! Chamava-me o seu alferes.” Todas as pessoas o tratavam também de “senhor alferes” e, ao passar do tempo, essa nomeação marcou transformações na vida desse homem. Elevou sua autoestima, ele passou a ser tratado com respeito e consideração, a ponto de “na mesa tinha eu o melhor lugar, e era o primeiro servido”. Sua querida tia Marcolina pôs em seu quarto um espelho o que alegrava muito ao alferes e o fazia sentir-se importante e “grande”.
Machado escreve uma frase lapidar nesse conto: “O alferes eliminou o homem”. Não é tão difícil entender que, às vezes, um título, um nome, um cargo, preenchem o vazio de uma alma pobre, depressiva e com profundo sentimento de inferioridade. Assim aconteceu com o nosso alferes. Prossegue Machado em seu conto: ”No fim de três semanas, era outro, totalmente outro. Era exclusivamente alferes”. Um dia, sua tia recebe uma noticia dolorosa de que uma de suas filhas estava doente, uma doença mortal. Dona Marcolina teve que deixar a casa e o alferes. Sem os agrados que sua tia fazia e o tratamento que lhe dava, o alferes começou a se sentir só, quem sabe, se sentindo abandonado mesmo que os empregados e escravos da casa o tratassem como “senhor alferes”. Para encurtar a história, o alferes começa não mais se valorizar, a não ter mais os sentimentos de grandeza, de ser amado, de ser alguém importante: “Nunca os dias foram mais compridos, nunca o sol abrasou a terra com uma obstinação mais cansativa… feria-me a alma interior…porque a alma interior perdia a ação exclusiva, e ficava dependente da outra, que teimava em não votar…Convém dizer-lhes que, desde que ficara só, não olha uma vez só para o espelho”. Enlouquecido com a separação da tia, e consequentemente com o sentimento de perda de ser alferes, ele passou a ter crises de pânico, medo de enlouquecer. De repente, surge a ideia de que, lembrando da farda de alferes, poderia vesti-la e talvez achasse a “alma exterior”, a aparência, o faz de conta, que ocultava seu ser depressivo e melancólico. Não teve outra solução: vestiu a farda!
O velho Machado, em sua genialidade termina seu belo e triste conto narrando o que passava naquele homem, naquele momento: “”Assim foi comigo. Olha para o espelho, ia de um lado para outro, recuava, gesticulava, sorria, e o vidro exprimia tudo. Não era mais um autômato, era um ente animado. Daí em diante, fui outro. Cada dia, a uma certa hora, vestia-me de alferes, e sentava-me diante do espelho, lendo, olhando, meditando; no fim de duas, três horas, despia-me outra vez. Com este regime pude atravessar mais seis dias de solidão, sem os sentir…”
Caro leitor, leia o conto e medite sobre o mesmo. A história tem uma conotação impressionante, ou seja, como alguém não pode renunciar a se vestir de Alferes, caso contrário fica sem recursos para sobreviver em sua solidão, não se reconhece a si mesmo tal pobre era a sua “alma interior”.
Renunciar a viver uma “identidade frágil” através de um cargo, mostra a resistência em usar suas qualidades, e continuar a viver, não com roupa de Alferes, pois alferes não era. Quando não se consegue ser-si-próprio, a não ser com uma fantasia, com a “farda de um alferes”, é hora de saber sair do invólucro, do personagem, e continuar sua vida de honradez, qualidades outras, virtudes menos vaidosas. Caso seu mundo interno seja vazio o que resta é um faz-de-conta ou uma alma depressiva. O que Machado nos ensina nesse belo conto é que a Aparência empobrece a capacidade de desenvolver a Essência. Ser si mesmo é mais significativo e enche mais a nossa pessoa, do que tentar vestir uma roupa que nos escraviza e nos faz pensar que realmente somos Alferes. E aí, não há como renunciar para Ser-si-mesmo!
Quantas e quantas pessoas nesse mundo sobrevivem, dão a vida e se sustentam no engano de um “falso eu” que não pode renunciá-lo, caso contrário, o que está por detrás do Espelho não é compatível com uma vida autêntica, agradável e sadia. A renúncia a ser o que é, é um ato de coragem, de humildade e de verdade e de compromisso social.
Hoje, somos solapados por pessoas, pessoas que têm funções importantes na vida dos outros que, não servem mais para processos de identificação tal “a mentira que são”; pais, instituições governamentais e políticas, igreja, família, judiciários, enfim, estamos vivendo um mundo no qual nossos filhos e netos estão pasmos sem “modelos” para identificação. E essas pessoas que fazem parte de uma “referência faz- de- conta” não renunciam ou não se transformam por causa de um narcisismo patológico, uma vaidade desvairada e uma fome de poder usando “fardas de Alferes”.
“O Alferes tomou o lugar do Homem”, escreve Machado.