O tecido psíquico e biológico do animal-humano é revestido desde seu aparecimento, de duas forças internas: a força de vida, sua vitalidade intrínseca, e sua agressividade permeada de impulsos destrutivos. O que se espera sempre é uma conjunção sadia dessas duas forças no sentido da predominância da vida. Há uma agressividade que chamo de útil, necessária, imprescindível ao crescimento, e outro tipo de agressividade, a destrutiva, que sabota a vitalidade. Somos então pessoas conflituadas por natureza e, sabendo disso, temos de cuidar que a nossa parte mortífera não nos mate nem aos outros, antes da morte natural.
Amar-odiar, criar-destruir, preto-branco, desespero-esperança, ser-não ser, são conjuntos naturais que habitam o funcionamento mental. Há entre nós uma força que puxa para o repouso e outra que quer criar, produzir, trabalhar, expandir e crescer. Essa ambivalência sempre existiu e existirá, compete a nós, termos a tarefa de lidar com o conflito e não, querer se livrar dele. E como isso pode ser elaborado? Temos, todos nós, uma parte herdada e outra introjetada pela cultura, e agora podemos falar de maior ou menor tolerância às frustrações. Temos, ao contrário dos ditos animais inferiores (?), o bendito Desejo, tanto inconsciente como consciente. Desejar é buscar satisfação e nem sempre isso é viável, mas é uma força muito poderosa. A mente humana procura obstinadamente a realização dos seus desejos e a manutenção do “princípio de prazer” como sempre nos advertiu S. Freud!
Pois bem, se há desejo, se existem uma força que busca sua realização também há uma não realização, uma frustração do desejo, e aí começa a tragédia humana de prazer e dor mentais. Como transitar em área de tolerância e intolerância sem enlouquecer, sem reagir à frustração através de um ódio avassalador e mortífero? Parece que nosso mundo atual tem mostrado que a intolerância à frustração, a não realização de desejo, a “castração”, o impedimento, borram a noção de limites e daí nascem os atos psicopáticos e psicóticos tanto ao nível individual como grupal. Não mais se espera, é tudo para ontem, como um bebê que não pode brincar em seu berço enquanto sua genitora prepara a mamadeira. O mundo ficou rápido demais para exigir satisfações, caso contrário eu quebro, arrebento, roubo, trafico, perverto e entro na lista dos corruptores.
Entre 1929 e 1930, Cecília Meireles escreveu uma obra singular, na forma de uma bela prosa poética chamada –“Episódio Humano”. Lá, num de seus pequenos ensaios, existe um —“Aquele mundo que perdemos…”, onde nossa escritora, pessoa leve, suave, densa e cortante escreve: “Tiraram-nos então desse mundo, e levaram-nos para o seu. No seu, tudo tem nome determinado e uma utilidade imediata. Não há coisas para viverem conosco. Há, somente, coisas para nos servirem. Não podemos demorar diante da paisagem pela simples alegria de a sentirmos bela. É preciso seguirmos o caminho da vida. Mas para onde é que leva essa vida que os homens inventaram? Por que é que os homens acreditam que ela é melhor que a outra, a outra que nasceu de si mesma, que brotou como as fontes e que iria cantando até o mar? Agora, cantando, evidentedemente, não irá. E o mar, também, depois de tantos transtornos, não temos nenhuma esperança que exista: e não sabemos, portanto, se o há de alcançar ou não.”
Em “Mar absoluto e outros poemas”, encontrei esse canto poético de Cecília que uso como um grito no meio dessa vida de ódio e intolerância:
“Prazo de vida”
No meu meio do mundo faz frio,/ faz frio no meio do mundo,/ muito frio.
Mandei armar o meu navio./ Volveremos ao mar profundo,/meu navio.
No meio das águas faz frio./ Faz frio no meio das águas,/ muito frio.
Marinheiro serei sombrio, / por minha provisão de mágoas./ Tão sombrio!
No meio da vida faz frio,/ faz frio no meio da vida./ Muito frio.
O universo ficou vazio,/ porque a mão do amor foi partida/ no vazio”.
Vamos torcer para reencontramos o Mar!