A dor da perda de uma pessoa ou de um objeto amado atinge a alma de cada um, diferentemente do ferimento físico que recai sobre o corpo. Perder o que se ama é uma ferida íntima que às vezes é uma perda de si mesmo. A alma chora, se desespera, acha que não vai conseguir suplantar a falta, e às vezes não suplanta mesmo, caindo numa depressão melancólica pelo resto da vida. Isso acontece quando se perde um filho, uma das maiores injúrias que alguém pode experimentar na vida.
Mas a perda, ou as perdas acontecem desde o nascer. Perdemos a “ilusão intrauterina” e somos lançados nesse mundo que faremos a nossa travessia entre veredas criativas e destrutivas. Ao nascer, a pessoa vive um momento de solidão fundamental até ser acolhida por alguém, quase sempre a mãe, que a recebe com provisão física e afetiva. Experiência desse tipo acontece ao contrário: a mãe ou maternagem não está presente —- um abismo vazio se abre diante do infante traumatizado por uma ausência maior, que vai ser responsável por angústias graves por toda da vida.
Essa ruptura ocasiona um sofrimento terrível, dando um sentimento quase constante de desamor, de angústia de abandono, de separação, hoje conhecida como a famosa “síndrome do pânico”. A síndrome do pânico é uma experiência terrorífica que algumas pessoas atravessam com sensações e sentimentos de morte iminente, esfalecimento, suores profusos e uma inquietação psíquica de desmoronamento. Perde-se o chão, a referência, tudo fica estranho, persecutório, e vive-se um grito de terror onde a pessoa procura um acolhimento: são marcas passadas de experiências traumáticas de abandono e/ou desamor vivido na tenra infância.
Quero hoje enfatizar a perda real de uma pessoa amada. Quando se perde um ente querido, há uma solução de continuidade na homeostase do aparelho psíquico. As pessoas que já sofrem de baixa autoestima sofrem mais. Baixa autoestima é sinônimo de desamor a si mesmo, e para regular esse amor-próprio é necessário se abastecer no outro.
Juan Nasio, psicanalista radicado em França, escreve em seu livro, “O livro da Dor e do Amor”: “A dor psíquica é uma lesão do laço íntimo com o outro, uma dissociação brutal daquilo que é naturalmente chamado a viver junto.” Separado do outro é como se perdesse toda a proteção para continuar a viver. Não existem reservas íntimas, pessoais, para se sobreviver a falta?
E o quanto de amor-próprio, na hora da perda, não conta? É óbvio que estou falando de pessoas que colocaram todo o seu investimento amoroso no outro e, quando vem a perda, estão vazias, sem reservas, como se sempre a salvação fosse a outra pessoa. Prefiro falar em desamor a si próprio. Romeu nunca morreu por amor à Julieta, Romeu morreu por desamor a si mesmo.
Continua Násio em seu livro: “Observe-se aqui que a representação do ser desaparecido é tão fortemente carregada de afeto, tão superestimada, que acaba devorando uma parte do eu, isto é, inconciliável com as outras representações que foram desinvestidas.” Aí a possibilidade da caída numa melancolia, numa depressão maior em contraposição com a capacidade reparadora de fazer o luto. Morre-se com o morto, perde-se com a perda, e já não sobram mais recursos sadios e sim uma vida de queixas, culpas, dores, vitimizações e vazio existencial.
O que faz doer tanto quando se perde alguém que se ama? Éramos dois ou um só, fundidos. Um espelho que refletia meu ser e do qual nunca poderia me separar. É verdade, caso a outra pessoa seja eu(ainda que em fantasia), como posso me separar de mim mesmo?
Nasio ainda em seu livro traz questões importantes para que se consiga melhor compreender a dor da perda de amor. Escreve ele: “Vamos imaginar uma pessoa que nos seduz, isto é, que desperta e capta a força do nosso desejo. Progressivamente, respondemos e nos apegamos a essa pessoa até incorporá-la e fazer dela uma parte de nós mesmos. Insensivelmente, nós a recobrimos como a hera sobre a pedra. Nós a envolvemos com uma multidão de imagens superpostas, cada uma delas carregadas de amor, de ódio ou de angústia, e a fixamos inconscientemente através de uma multidão de representações simbólicas, cada uma delas ligada a um aspecto que marcou”.
Como se separar de uma con-fusão dessa maneira? Quanto mais fundidos estejamos com outra pessoa, dificilmente a separação será natural, elaborada por um luto como um processo fisiológico de desinvestimento. Fazer luto é poder substituir, é poder criar arranjos de escolha amorosa sem perder dentro de nós aquele que foi. Ele fica na lembrança saudável, na saudade, capacidade de ter o outro dentro quando da ausência.
Trago aqui, fragmentos de um lindo poema de Carlos Drummond elaborando separação e perda. O poema chama-se “Carta”:
“Há muito tempo, sim, que não te escrevo. Ficaram velhas todas as notícias.
Eu mesmo envelheci: Olha, em relevo, estes sinais em mim, não de carícias (tão leves) que fazias no meu rosto: são golpes, são espinhos, são lembranças da vida a teu menino, que ao sol-posto perde a sabedoria das crianças.
A falta que me fazes não é tanto à hora de dormir, quando dizias “Deus te abençoe”, e a noite abria em sonho.
É quando, ao despertar, revejo a um canto a noite acumulada de meus dias, e sinto que estou vivo, e que não sonho”.