Dito de outra forma, a atriz Camila Pitanga sentiu-se grata por seu colega e amigo ter “lhe devolvido a vida”.
Há várias formas de amar na vida da gente: o amor fusional que não separa o Eu do Outro; o amor canibal, que subsidiado pela inveja e a voracidade, devora o Outro, canibaliza; o amor possessivo, controlador, perseguidor e até assassino; o amor sádico, onde o parceiro é o “objeto” de uma masturbação, não de uma relação, para daí retirar prazer; e o amor genital, como dizia Freud: aquele que faz uma dupla, faz uma parceria, respeitando a individualidade.
Ninguém nessa vida tem o direito de morrer pelo outro ou de levar consigo o outro, quando se está morrendo. Quando alguém está se afogando, o salva-vidas geralmente imobiliza a pessoa para não ir junto com ele, é um método de trabalho e de defesa pessoal. No entanto, a pessoa que está se afogando, numa atitude de desespero e muita angústia, tende a puxar o outro consigo. Penso que não é para levar consigo, às vezes, mas é o desespero que não encontra o pensamento sadio para discriminar que a vida da outra pessoa é dela. Domingos fez o contrário com sua colega e amiga, não a levou consigo nem comprometeu a vida de Camila Pitanga.
É raro nos humanos essa atitude de respeito, humildade e consideração. Geralmente o “narcisismo perverso”, o “egoísmo patológico”, faz com que algumas pessoas não queiram morrer sozinhas, e carreguem consigo os outros, tanto na morte quanto na vida. Quantas e quantas pessoas vivem puxando seus parceiros para a infelicidade, para as queixas e lamúrias, para seu sofrimento, a ponto de ter uma “vida-morta” e tentar incluir nessa vida a outra pessoa.
Domingos não, Domingos Montagner, mesmo na hora de morrer foi amoroso com o Outro, como parece ter sido sempre sua atitude generosa, paternal, fraternal com as pessoas das suas relações. Seria fácil se agarrar na sua colega e provocar uma morte dupla! Alguma coisa nesse homem fez com que ele pensasse nela, mesmo morrendo. Foi um ato de amor e generosidade! Aliás, coisa que está rara nos dias de hoje.
Tanto o personagem do ator quando a pessoa de Domingos parecem fazer um par. O que estava na personalidade de Domingos Montagner estava também no personagem. Domingos sabia que era personagem e autor, o que mostra sua história de vida: um homem amoroso, esposo e pai exemplar, e de uma consciência política social muito presente e muito explícita na narrativa da novela “Velho Chico”. Bruno Luperi, diretor artístico da Novela, revelou nas redes sociais que: A semelhança entre Santos dos Anjos e Domingos Montagner é uma das coisas que mais chama a atenção. Conforme seu pensamento, não existia alguém melhor para defender seu herói. “Um personagem assim tende a beirar o “sem graça”, e Domingos resgatou valores raros e cada dia mais escassos… Caráter, moral, ética e a mais absoluta generosidade. E o fez de forma tão natural e sincera que eu não sei dizer o quanto disso era dele e o quanto era do Santo”.
A arte imita a Natureza e a experiência humana, o que faz a arte ser Arte.
Essa novela chega num momento crucial de crise pela qual passa nossa sociedade. Crise na Família, no Estado, na Política e na Justiça. “Velho Chico” é um texto poética, prosaico, de uma musicalidade sem precedentes; seus atores parece que falam na “linguagem dos gestos”, do pré-verbal; denuncia as formas de escravidão ainda vigentes em nosso país, e mostra que o respeito pela Natureza, a questão ecológica é o futuro do nosso crescimento e desenvolvimento. “Santo dos Anjos” é um líder de transformações sociais, um homem que troca o ódio, o ressentimento, a vingança, pelo amor familiar, pelas parcerias e por acreditar que combater as minorias ricas e poderosas é uma maneira de democratizar a política, os meios de produção e melhor distribuição de renda.
Termino minha escrita de hoje, oferecendo a Domingos Montagner um belo poema do poeta moçambicano, Mia Couto. O poema é: “Percurso”:
Viajaste sobre árvores sem sombra
Pisaste a carne da pedra.
Rasgaste o fio da água.
E aprendeste: o teu gesto não é destinado a ter dimensão.
Agora, sabes: Teus braços foram feitos para abraçar horizontes.
És maior que o voo do sono. E voltas a ser nada quando infinito te pensas.”