Relato testemunhal e ficção, narrativa do “Velho Graça” no inquietante romance: “Angústia”. Na terceira leitura dessa obra, sinto-me novamente envolvido, apaixonado, mergulhado e, às vezes identificado com a maneira como, o alagoano escritor desvela, publica e denúncia estados de alma, crises existenciais do ser humano, tanto no aspecto individual, micro, como observação dos fenômenos sociais.
Com seu jeito “seco”, “enxuto” de não desperdiçar palavras e usá-las quando elas apreendem sua intuição, o texto vai se fazendo numa conjuntura individual e social do personagem Luis da Silva. Sinto como alguém revela sua genialidade para apreender e nomear estados profundos, alucinatórios, quase psicóticos da mente humana. No caso desse romance, o autor narra de uma maneira simples, dura, ansiosa, depressiva, a olhares fenomenológicos do amor, ciúme, perseguição, ódio, violência, culminando com o ato homicida.
Graciliano descreve uma triangulação mítica, edípica, entre Luis da Silva, Marina e Julião Tavares. Penetra na experiência psíquica de uma pessoa perseguida em função de uma paixão; de um crime; da culpa e do castigo, tanto interno como externo, culminando com uma prisão de fato. Ao mesmo tempo, o ex-prefeito da cidade de Palmeira dos Índios, no estado de Alagoas, contribui para mim como psicanalista, uma fenomenal “vivencia do tempo”, do tempo psicótico, do tempo do inconsciente, um tempo onde passado, presente e futuro se mesclam numa conjunção onírica. Escreve o Graça:” Mas no tempo não havia horas… e o dia estava dividido em quatro partes desiguais: uma parede, uma cama estreita, alguns metros de tijolo, outra parede.”
O livro é uma ficção e também um texto de memórias. Graciliano pinta com palavras a importância da memória, da sua memória, da memória de fatos e memórias de ficção. Uma memória do passado e uma memória do futuro. A experiência narrada mostra um “arco-íris” preenchido por percepções reais, momentos alucinatórios, pesadelos, sonhos acordados, claro que elaborando consciente e inconsciente sua história pessoal, íntima, subjetiva, A genialidade do escritor repousa nessa condição peculiar de apreender fenômenos que a maioria dos “viventes” não se dão conta. Perceber, digerir, mastigar, sonhar, procurar a palavra e comunicar – a arte exige a passagem ao território social, caso contrário seria uma experiência masturbatória, egocêntrica e abortiva.
No que tange à procura da palavra, em Graciliano a questão sempre foi de muita exigência, paciência e técnica. Cecilia Prada, escritora e jornalista, em seu rico livro: “Profissionais da Solidão”, Editora Senac, São Paulo, 2013 citando Antonio Candido, escreve: “escritor sem gorduras, magro convicto, de carnes, porte, personalidade e evidentemente estilo literário”.
Aliás, em todas as contracapas, editadas pela Record, lemos a maravilha metafórica da escrita de Graciliano. Vejam: “Deve-se escrever da mesma maneira como as lavadeiras lá de Alagoas fazem seu ofício. Elas começam com uma primeira lavada, molham a roupa suja na beira da lagoa ou do riacho, torcem o pano, molham-no novamente, voltam a torcer. Colocam o anil, ensaboam e torcem duas vezes. Depois enxáguam, dão mais uma molhada, agora jogando a água com a mão. Batem o pano na laje ou na pedra limpa, e dão mais uma torcida e mais outra, torcem até não pingar do pano só uma gota. Somente depois de feito tudo isso é que elas dependuram a roupa lavada na corda ou no varal, para secar. Pois quem se mete a escrever devia fazer a mesma coisa. A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso, a palavra foi feita para dizer.”
O método de escrever do cânone Graciliano é um belo exemplo que pode se estender a qualquer ofício: observação, observação, cuidado com a narrativa dos fatos e dos estados conscientes e inconscientes, enxugando as palavras e procurando aquela que revele de modo exato, o pensamento. Recorda-me Platão: primeiro as sombras e depois o sol em sua própria morada.
Lembra-nos Ricardo, filho do mestre, citado na página 234 do livro de Cecilia Prada:” – a sobriedade, a precisão da escolha vocabular, o sistemático ato de “cortar a gordura do texto”, a calma da rotina diária: de pijama, sentado à mesa que ficava em seu quarto, escrevia desde cedo até as onze horas, em letra miúda e regular… da crônica ao artigo sobre livros, da revisão de textos às traduções, ganhando a vida que considerava fundamental: a sua opinião” (Ramos 1992), pois nunca escreveu, ou subscreveu, aquilo que não acreditava.”
O livro “Angústia” é uma prova da genialidade desse nordestino preocupado, tanto quanto João Cabral de Melo Neto, Guimarães Rosa, José Lins do Rego e Euclides da Cunha, com o que ele próprio escreve em seu livro: ”Está aí uma história que narro com satisfação a Moisés. Ouve-me desatento. O que lhe interessa na minha terra é o sofrimento da multidão, a tragédia periódica das secas. Procuro recordar-me dos verões sertanejos, que duram anos. A lembrança chega misturada com episódios agarrados aqui e ali, em romances. Dificilmente poderia distinguir a realidade da ficção.”
Enfim, “Angústia” é mais do que um drama psicológico de Luis da Silva, é um constante e atual grito de desespero do Nordestino, esmagado, esfoliado, subjugado pelo poder da aristocracia e da política brasileira que continuam apáticas, insensíveis e perversas diante das classes menos privilegiadas.