Alva, clara, de olhos esverdeados, quando anda traz movimentos leves como se fosse uma manequim. Graduada em Arquitetura, mas nunca soube de fato o que almejava ser. Joga tênis, e religiosamente comparece a uma academia de ginástica de modo obsessivo. A vaidade é uma virtude que ultrapassa o cuidado afetivo consigo mesma. Aliás, diga-se de passagem, se Alice tem algum afeto com ela mesma! Quando diante do espelho, objeto sem disfarces, sente defeituosa, feia, incompleta e mal feita de nascença, lembrando Shakespeare em Ricardo III. Aos olhos alheios é uma jovem linda, corpo provocante, pernas longas, curvas perfeitas e um jeito de estrela de cinema. Pena que a moça não enxerga, ou melhor, só enxerga o que gostaria de ser e ter. É o não ter, a sua angústia de existência. Estuda línguas, três: inglês, espanhol e mandarino. Pergunto o que Alice pretende com isso! No dia a dia de sua estrada de vida, não trabalha, filha de pais altamente abonados. Amigos, amigas e ficantes somente para o consumo. Fica, fica, nunca namora, nunca estabelece uma consistência afetiva em suas relações. Ás vezes, em seus solilóquios se questiona: “gosto de alguém? Sente-se superficial. Na intimidade de seu travesseiro lhe vem uma tristeza, ainda que não compreendida, mas uma tristeza e uma sensação de “futilidade” e “vacuidade”. Confesso que tenho dúvida se Alice tenha tido algum dia uma percepção maior, mais profunda da sua existência. Vive, consome, flutua como seus passos em mares mornos, sem cor, sem ondas turbulentas nem acalmias cálidas e belas. Alice é um personagem, vários personagens, ou como disse Luigi Pirandello: é um personagem em busca do autor. Personagens as pessoas vivem é claro, mas refiro-me aqui de personagens como formas de encobrir a natureza de uma pessoa. Somos e temos vários personagens em nossas vidas, mas sabemos, ou quem sabe não sabemos que somos autores, responsáveis pelas várias facetas e funções nessa nossa existência. Alice não, Alice é perdida em si mesma, mesmo dentro da beleza externa e da aparente moça de classe alta, estudada, formada, socialmente presente na sociedade pós-moderna onde o Ter substitui o Ser.
Essa minha Alice obviamente não é nem será a Alice do país das maravilhas. Aquela viveu o pão que o diabo amassou e aproveitou de metamorfoses da vida, tirando proveito quando caiu no buraco e descobriu o horror e a beleza da existência humana. A minha Alice está perdida sem saber que se perdeu. Outro dia, de súbito, teve uma crise de pânico! Que pânico foi o dela? O pânico do vazio de sua vida – a caída no buraco da vida liquida, amorfa, sem sentido e fadada a uma futura depressão. Depressão em sintomas mais objetivos, pois deprimida ela já é sem saber.
O que sempre me chama atenção nessa ninfeta é o desamor – a falta de amor por si própria ( a autoestima imprescindível para suportar os trancos da vida) e a ausência de amorosidade por alguém. Os outros na vida de Alice são objetos, abjetos, não são pessoas. São “drogas” usadas para obtenção de prazer pelo prazer; não são parcerias que expandem a vitalidade e produzem a alegria de viver. O mundo pós-moderno se transformou num cenário da “drogadição” às pessoas, pessoas como drogas, além das drogas propriamente ditas. Viver drogado é um desespero da incapacidade de amar a si e aos demais, e a ânsia constante em ser amada. É trocar a parceria por uma vida “autista”, falsamente independente e profundamente dependente.
A minha metáfora (Alice) é a evidência do risco que a juventude atravessa nessa época de uma vida narcísica, consumista, vazia e abortiva. Alice é a dor que tem urgência em ser atendida. Atendida por seus pais (ausentes), atendida pela comunidade e por, quem sabe, um processo intenso de uma psicoterapia profunda. Alice é a “insustentável leveza de ser”, é o grito de uma juventude perdida, sem referenciais, sem governo, sem ética e sem fé, nesse mundo onde os valores éticos e humanos urgem serem resgatados.
A história de Alice trouxe à memória um poema de Álvaro Alves de Faria em seu livro “Trajetória Poética”, Ed. Escrituras.A Catástrofe
“Os gafanhotos brancos de asas de celuloide
Arrasam o cafezal e comem os olhos das pombas.
Antes devoram os bois
E afugentam os cavalos que enfeitam a tarde.
A noite era ainda um pomar,
Até que os gafanhotos e os grilos
Viraram gigantes
E de tão grandes se engoliram a si mesmos
Prédios e automóveis e um trem que ia para Curitiba.
Ninguém soube noticia
E nada mais havia a dizer.”