A vida não é uma linha reta nem tampouco uma certeza alucinada que alguns humanos, “onipotentes e oniscientes” desejam. A vida é cheia de “veredas”, bifurcações, escolhas conscientes e inconscientes em suas encruzilhadas. Viver é um exercício diário, mesmo que as mentes humanas queiram nortear esse viver usando memórias do passado e anseios e desejo para o futuro.
O que se esquece sempre é de viver o presente, presente que na maioria das vezes criam arranjos novos e inéditos. O presente não tem uma estática, é um redemunho de experiências inéditas. Acorda-se todo o dia, mesmo que não pense nisso, para o desconhecido. Acorda-se sempre, mesmo que às vezes não se acorde, a morte nos traga no silêncio ou no pesadelo dos sonhos. Viver é perigoso mesmo e, de repente o diabo na rua aparece sem nossa permissão. Tanto fora, na realidade factual como dentro de nós, nas surpresas dos nossos sentimentos, afetos e paixões.
Santo Agostinho, o sábio, em suas belas e dolorosas “Confissões” traz uma história interessante e profunda como metáfora das adversidades na vida. A história diz respeito a um homem que detestava o divertimento dos espetáculos antigos dos gladiadores. Essa pessoa real ou imaginária se recusava de uma maneira rígida a assistir com seus amigos os espetáculos de cenas de violência dos jogos cruéis da antiguidade.
Convidado que foi, por amigos, a ir a um desses espetáculos, afirmou: “Por arrastardes a esse lugar e lá colocardes o meu corpo, julgais que podereis fazer com que o espírito e os olhos prestem atenção aos espetáculos? Assistirei como ausente, saindo assim triunfante de vós e mais dos espetáculos”. Os amigos levaram-no, desejosos de constatar se a certeza daquele homem tinha consistência e cumpriria a promessa.
O jogo começou, o ambiente era de paixão(sádica) e de fortes emoções na medida em que alguns se identificavam com o vencedor ou o vencido. O personagem convidado permanecia resoluto a fechar os olhos do rosto e os olhos da mente, numa tentativa de negar o que acontecia e não viver a sofrença da “festa”. Suportou pouco essa atitude de negação.De repente, “abriu os olhos. Imediatamente foi ferido na alma por um golpe mais profundo do que havia recebido no corpo o gladiador a quem desejou contemplar.” Sua pessoa foi abatida, invadida e tomada de um sentimento estranho, paradoxal às suas convicções.
Sua alma foi realmente abatida, sentiu prazer na violência do combate, vibrou, ficou arrebatado pelo prazer da destruição e pelo desejo mortal do gladiador cumprir sua missão de assassino. Da certeza de uma alma pura, agora sentia em suas entranhas o prazer do “Diabo” solto na vida. Tornou-se um frequentador assíduo dos espetáculos, ainda que conflitado com sua natureza humana que prefiro chamar de “animal-humana”
A metáfora agostiniana remete a pensar que todos nós, todos sem exceção, somos anjos caídos, feito de uma tessitura amorosa e destrutiva, que numa situação dessa, assusta e destrói nossa autoidealização desde criança. A mãe que pare um filho não quer saber que pariu também um paradoxo! Somos Deus e o Diabo na Terra do Sol, como disse Glauber Rocha. A vantagem em reconhecer a parte diabólica da nossa personalidade é que podemos cuidar dela, e não fecharmos os olhos como o personagem da história de Agostinho.
Por mais que os racionalistas procurem causas ambientais e externas (claro que existem), é inevitável. Quando somos levados a olhar para dentro, enxergar que nossas mentes e nossos atos mentais são também da nossa responsabilidade, temos o trabalho de durante toda a vida desenvolver nossa civilidade. Vivemos no tempo da morte, do terrorismo, do canibalismo destrutivo, da força de pulsão de morte; vivemos num tempo de guerras, competições destrutivas e prazeres sádicos tanto quanto as festas dos gladiadores e o êxtase dos imperadores quando mandavam aniquilar seus opositores; vivemos num caos onde respeito, amorosidade, generosidade, parceria, responsabilidade social, compaixão, são expressões raras numa civilização narcísica, homicida, suicida onde a finalidade das conquistas é dizimar milhões e milhões de pessoas. Vivemos um clima de extermínio de parte da população mundial. O personagem do filósofo se transformou em diabo feliz.
Melhor deixar as palavras com nosso poeta nordestino, João Cabral de Melo Neto, em seu poema: “Contam de Clarice”:
“Um dia, Clarice Lispector/ intercambiava com amigos/ dez mil anedotas de morte,/ e do que tem de sério e circo./Nisso, chegam outros amigos,/ vindos do último futebol,/ comentando o jogo, recontando-o,/refazendo-o, de gol a gol./ Quando o futebol esmorece,/ abre a boca um silêncio enorme/ e ouve-se a voz de Clarice: Vamos voltar a falar de morte?”