Centrando uma pequena análise em “Grande Sertão: Veredas”, sou instigado a fazer uma “improvisação” a partir de fragmentos da obra de Guimarães e relacioná-los com aspectos da teoria e prática da psicanálise. Sempre concordei com Freud que tinha a coragem e a ousadia de dizer que apesar de tudo aquilo que ele pesquisou, observou em sua sala de análise e na elaboração de suas teorias, “os poetas tinha chegado antes”. Estava criado assim o vértice estético-artístico da psicanálise, ou seja, a psicanálise é uma “ciência” que sozinha não abarca o conhecimento da realidade psíquica. Hoje em dia, vários textos acadêmicos se interessam pelo que se chama de “intertextualidade”, e um deles é a parceria da psicanálise com a literatura.
Bom, caro leitor, Guimarães Rosa, Carlos Drummond de Andrade, na abertura do Romance escreve um poema que agora saliento uma de suas estrofes: “Projetava na gravatinha/ a quinta face das coisas/ inenarrável narrada?/ Um estranho chamado João/ para disfarçar, para farçar/ o que não ousamos compreender?” Um poeta, que como todos os grandes poetas, pois a prosa de Guimarães sempre foi prosa poética, que apreendia o inominável, o não dito, e mais: numa linguagem neologística, criava uma língua, a língua brasileira em sua essência sub-reptícia. “Disfarçava” no sentido de, através de história e metáforas, descrever as vicissitudes do sofrer e da alegria do homem comum e de todos os homens.
O diálogo de Riobaldo é um permanente rosário de insights, sacadas profundas sobre a dor, a violência, o ódio, a vingança, mas também a doçura, a generosidade, o respeito pelo outro e o amor por Diadorim, vivência central do seu romance, mostrando a candura de uma amizade terna escrita num lirismo romântico-moderno. Ouso dizer, assim como Marcel Proust, Thomas Mann, Gustave Flaubert e Clarice Lispector, sua obra é uma autoanálise de uma profundidade e repercussão no leitor que se lê na obra. Ler Rosa são releituras, caso contrário não nos identificamos nem introjetamos as experiências e intuições sobre a alma humana. Passamos agora a meditar sobre alguns fragmentos belíssimos, dolorosos e realísticos. Claro que devo me ater a alguns, pois a obra é imensa e daria vários artigos e ensaios. Vejamos:
–“Explico ao senhor: o diabo vige dentro do homem, os crespos do homem – ou é o homem arruinado, ou o homem ao avessos… o diabo na rua, em meio ao redemoinho… E o demo – que é só assim o significado dum azougue maligno – tem ordem de seguir o caminho dele, tem licença para campear?! Arre, ele está misturado de tudo”. (p. 12)
O romance, a letra de Rosa já começa tendo a coragem de denunciar a natureza humana, o que chamo de animal-humano. Somos todos meio animal e meio humano, o que exige sempre o cuidado com “civilizar”, ter uma educação que possa tornar nós homens menos diabo, menos instintivos e pulsionais, mostrando sua violência, sua destrutividade, hoje tão atual. Sabemos todos, que o homem é o animal que mais mata seus próprios semelhantes. Mata de morte matada e também através do seu “vampirismo pelo poder e acumulação de bens”, oriundos dos impostos recolhidos da população, desviando verbas governamentais para evitar a mortalidade infantil. “Eu gosto de matar” – uma ocasião ele pequenino me disse. Abriu em mim um susto; porque passarinho que se debruça —o vôo já está pronto! (p. 36)
Nosso diplomata escritor conhecia as nuances da perversidade e dos aspectos dos distúrbios de caráter dos humanos, principalmente alguns, e não poucos que detém o poder. Certa ocasião escrevi uma crônica que dei o título de: “O Inferno de Dante é aqui”, no nosso jovem Brasil, ainda vivendo um modelo de Senhor e Escravo, espoliando a classe menos privilegiada, inclusive a classe média.
Na escrita de outro vértice da obra do nosso mineiro, aparece a beleza de sua prosa poética quando se refere a profundidade da experiência da Solidão:
“Sempre que estou entristecido, é que os outros gostam mais de mim, de minha companhia. Por que? Nunca falo de queixa, de nada. Minha tristeza é uma volta na medida; mas minha alegria é forte demais. Eu atravessava no meio da tristeza, o Reinado (nome falso de Diadorim) veio. Ele bem-me quis, aconselhou brincando: ‘- Riobaldo, puxa as orelhas do meu jumento…’ Mas amuado eu não estava… Mas, de feito, eu carecia de sozinho ficar… Sozinho sou, sendo de sozinho careço sempre nas estreitas horas – isso eu procuro… Homem como eu, tristeza perto de pessoas amiga afraca. Eu queria mesmo algum desespero. Desespero quieto às vezes é o melhor remédio que há… De repente, tomei em mim um gole de um pensamento – estralo de ouro; pedrinha de ouro. E conheci o que era socorro.” (p. 204)
É impressionante, e isso ensina aos psicanalistas e a todos nós a importância de viver a Solidão. A sofrença, como escrevia Graciliano Ramos, é uma experiência emocional quando se atravessa toda a alma e o corpo. Quando estamos tristes e não deprimidos, podemos pensar, “goles de pensamentos”, e tirar proveito da tristeza para elaborar a dor psíquica. Aquele que não pode ficar triste tem toda a possibilidade de viver a melancolia e a depressão. Tristeza é um sentimento integrado, dá-nos condições de juntarmos os “cacos provindos da dor, dos naufrágios da vida, dos momentos de desespero”; claro, se como diz Rosa, “desespero quieto”, ou seja, transitar pela tempestade de situações dolorosas sem perder a capacidade de enlouquecer, de reagir impulsivamente como defesa e para fugir da dor mental. Conter a dor psíquica é um recurso que poucas pessoas sabem que a mente tem.
“Sujeito muito lógico, o senhor sabe: cega qualquer um”.
Nota: Todas as citações são da 2ª Edição, editada pela Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 2001.