Psicanálise da vida cotidiana – Saudades – 02/08/17

“Saudade é sentimento que a gente cultiva com o regador para preservar o cheiro da terra encharcada. É bom deixá-la florescer, vê-la brotar como cachos de tomates, desde que permaneçam verdes e longe da faca afiada. Nada tem mais açúcar que um tomate verde.”
(In “Vermelho Amargo”, de Bartolomeu Campos de Queiroz).

A noite era uma noite fria de inverno. Seco o ar, obrigava às pessoas se protegerem de um mal estar geral, onde todos os órgãos faciais sofriam de obstruções nasais, dores nos ouvidos, olhos lacrimejantes e uma sensação de falta de ar, própria do clima do cerrado central do país.

Stanley havia me telefonado para saborearmos um quente café, e tinha um assunto importante a me falar. O assunto era um belo e suave sonho com seu irmão, na noite anterior.

No momento em que degustávamos o café cremoso, seus olhos brilhavam como as estrelas daquela noite, do seu fácies eram emitidas raios de singeleza, delicadeza e muita serenidade. Logo contou o sonho:

”Um sonho, meu amigo, de uma imagem em movimento. Eu enxergava de longe a presença de meu irmão, morto há mais de vinte anos. Ele vinha correndo em minha direção, aconteceu de imediato um belo abraço, muito apertado, que parecia ter durado todos aqueles anos em que não nos víamos. Lágrimas profusas dos dois, depois, olhos nos olhos, e um sorriso oceânico de felicidade e de ternura. Estou em estado de graça, amigo”.

Que bom que na vida, a nossa mente nos brinda com momentos oníricos, substitutos da realidade factual! Assim são os sonhos, uma realização de desejo como dizia  Freud, sonhos que através deles, trazemos o passado para o presente.

Fiquei a pensar: saudade, saudade, palavra que parece só ter na língua portuguesa, mas que encerra uma experiência psíquica por demais necessária e bela na existência de qualquer pessoa.

Saudade fala da presença na ausência do outro, recurso que algumas pessoas nunca conseguem, pois carregam dentro de si, não o amor pelos seus, e sim raiva, ódio, ressentimento e profundo sentimento de rancor.

Quem não sofre de saudade nunca poderá fazer lutos, nunca poderá sonhar e se deliciar, como Stanley: a possibilidade onírica de ter seu irmão na ausência do mesmo. Se temos aqueles a quem já perdemos, que estão longe geograficamente, que há anos não vemos, é na dor  da falta que a saudade entra para preencher o vazio.

 

Carlos de Almeida Vieira – Médico psiquiatra, Psicanalista da SPBsb, Membro da Federação Brasileira de Psicanálise –  FEBRAPSI e da International Psychoanalytical Association – IPA

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