Clarice sempre atual

Nádia Batella Gotlib, rigorosa na biografia Clarice Lispector: uma vida que se conta, descreve um perfil mais do que próximo do personalismo da nossa escritora. Escreve ela: “Próxima. Distante. Vaidosa. Terna. Sofrida. Lisérgica. Valente. Visionária. Intuitiva. Adivinha. Estrangeira. Enigmática. Simples. Angustiada. Dramática. Judia. Insolúvel”. Clarice é um espectro pouco comum que se metamorfoseia para dar espaço em tanta criatividade e capacidade de pensar e sentir o que normalmente, nós mortais não temos essa “dádiva divina”.

Atualmente tem sido frequente uma nova febre das leituras da ucraniana-brasileira que fez do nosso país sua pátria maior. Na revista Cult de novembro, somos surpreendidos por ensaios profundos e necessários para ter sempre Clarice uma permanente Água Viva, para mim um dos preferidos trabalhos da autora.

Um escrito denso, angustiante, provocador e instigante. Sempre acho que esse trabalho, de mais um pouco de noventa páginas, condensa, explicita e informa o que se pode chamar “vicissitudes da arte de escrever”. Escrever, não escrever, suportar o silêncio do negativo, do não pensar, e ainda mais, da angústia de antes do pensamento.

Aliás, lendo a biografia de Clarice, escrita por Benjamin Moser, um fato curioso é narrado: Clarice para decidir chamar o título definitivo de “Água Viva”, antes sugere a si mesma o título: “Atrás do pensamento”; logo depois pensa em “Objeto Gritante”, para chegar afinal em Água Viva. É um texto de uma elaboração profunda, angustiada, paciente e por demais instigante, pois tenta elaborar um tema sofrido, procurar a palavra para quem sabe poder escrever; esperar que a palavra saia das memórias de “atrás do pensamento”, ou da emergência de um estado de êxtase que derrama sobre sua mente a tentativa de se aproximar da “coisa em si” kantiana, que ela mesma se refere ao “IT – a coisa”. Escrever o indizível, pensar os fragmentos dos restos de naufrágios que a vida nos coloca; tolerar o silêncio mortífero sem inspiração, assim como sentir o prazer de após o nada, o escuro, enxergar o sol nascendo numa prosa poética que tenta definir, ou dar ideia da dor de parir um pensamento, um poema, um livro. Clarice é ousada, louca-sana, alguém que sabe sofrer mantendo uma capacidade de sublimação incrível, sem enlouquecer no sentido pejorativo do termo.

Há um livro, publicado em 2013, “Com Clarice”, de Affonso Romano de Sant’Anna e Marina Colasanti, que mostra de uma maneira mais detalhada, a arte de Clarice escrever. No capítulo “Palavras que atrapalham e ajudam a viver”, Affonso Romano, a propósito da escrita de Clarice e dos escritores enfim, escreve: “Com as palavras, a gente tem de tomar cuidado, pois no primeiro encontro nos libertam, depois nos aprisionam. Há palavras tão duras e montanhosas que nem com trator, só dinamitando. E o fato é que um simples ‘bom dia’ ou ‘alô’ pode salvar uma vida. A psicanálise pretende ser o método da ‘cura pela fala’, mas também pode se tratar pelo ouvido. As palavras ouvidas também curam. Vejam a mãe soprando o dedinho do filho dizendo: ‘já passou o dodói, pronto’. Viver também é a arte de lidar com as palavras. E como já disse alguém: ‘As palavras são caminhos para encontrar coisas perdidas’.”

É aí que sinto a importância da obra de Clarice Lispector. Toda a sua vida foi uma procura, uma investigação, uma disciplina árdua e dolorosa de resgatar o que todos nós vivemos antes da palavra. Água Viva é esse exemplo e esse legado que Clarice deixa, até hoje e eternamente – seus estados de “epifania” à procura dos objetos perdidos que podem ser recuperados através da sua literatura, da Literatura.

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