Vida, morte, encantamento

“Estive lendo um dia um filósofo, sabe? Uma vez, segui um conselho
dele e deu certo. Era mais um menos isto: ‘é só quando esquecemos
todos os nossos conhecimentos é que começamos a saber’.”
(Clarice Lispector)

Lispector praticamente nasceu, cresceu e morreu “nordestina”. É em seu último escrito, “A hora da Estrela”, que nos deliciamos, sofremos e aprendemos que nossa escritora moderna-maior mostra ainda mais sua arte e sua procura permanente do Escrever, através do personagem-autora Rodrigo S. M., e da nordestina Macabéa (também um tanto autora), vida, morte e como dizia Rosa, o Guimarães, encantamento.

“Devemos falar de uma nova Clarice, exterior e explícita, o coração selvagem comprometido com o projeto brasileiro?”, cita seu filho Paulo Gurgel Valente, no posfácio da edição de 2019, da Editora Rocco, comemorativa dos 100 anos da escritora. Acrescenta Paulo: “Em criança, mesmo vivendo na pobreza, não deixava de se impressionar quando visitava aos domingos os mocambos do Recife-PE, onde moravam as empregadas da casa e sensível às questões humanas e sociais. Afirmava que um dia iria mudar a condição dos menos favorecidos”. Vemos aqui, leitor amigo, uma Clarice com consciência política, justiça social, feminista num sentido maior, não festivo! Lispector era e foi sempre uma “Macabéa” e um “Rodrigo” (andrógina) em todos os seus textos intrigantes, provocativos, belos de uma prosa poética, mas como ela própria dizia que escrevia para pessoas maduras com o compromisso de se lerem também. Clarice não é para se consumir, é para se ler para viver menos apavorados e temerosos dessa vida “absurda mas feliz também” (o grifo é meu).

Clarice escrevia a Hora da Estrela, ainda no “leito de morte”, sem saber sabendo, e curiosamente (?) nos contando a vida de Macabéa, que morreria também acidentada por um Mercedes Benz numa avenida do Rio de Janeiro. Ao seu lado, segundo Ricardo Iannace, em seu belo livro ”A Leitora Clarice Lispector”, uma leitura não surpreendente de Clarice: “Humilhados e Ofendidos”, de Dostoievski.

Clarice foi e será sempre assim: uma escritora que não se dizia escritora, sempre esteve exercitando a arte da escrita; uma ucraniana, chegada meses após seu nascimento no porto de Maceió-AL, logo vive anos em Recife-PE e, após rodar o mundo acompanhando seu marido diplomata, do qual se separa, termina sua vida aqui, nesse planeta, na cidade do Rio de Janeiro. Logo, nasce uma estrela, deixando uma obra interminável, eterna e repleta de perguntas sobre a existência humana e animal (Clarice sempre amou os bichos e aprendeu muito com eles).

“Mas, se Macabéa morre sozinha, desamparada numa rua carioca, sua criadora prefere achegar-se ao escritor russo lido na adolescência. Não morre sem tocar Dostoiévski. Nessa hora, junta-se a um dos seus, e assim atesta esta sua última novela. “Este livro é uma pergunta.”

No último parágrafo do seu livro, Clarice nos deixa com a seguinte questão: “Qual é o peso da luz?”. E termina de uma maneira metafórica: “E agora — agora só me resta acender um cigarro e ir para casa. Meu Deus, só agora me lembrei que a gente morre. Mas… mas eu também?! Não esquecer que por enquanto é tempo de morangos. Sim.” 

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