Eu não fui mais um cético suicida
Que passou, pelo mundo, indiferente, a passos leves, esbanjando a vida
Prodigiosamente, perdulariamente.
“É um pobre moço! Um doido! Nem duvida dessa mulher!”, dizia toda gente
Mas eu passava de cabeça erguida
E te levava a vida de presente!
Dei-te quanto pediste
Ingênua e nua, minha alma toda ficou sendo outrora
Tua, só tua, unicamente tua
Quis dar-te mais: tu nada quiseste
Pelo bem que te fiz, padeço agora
A saudade do mal que me fizeste.
(NÓS – XXIII, de Guilherme de Almeida)
Loucura, doidice, insensatez, angústia, desespero, baixa-autoestima? Questões que passo a refletir após esse poema trágico e belo do nosso poeta Guilherme de Almeida. O poema revela uma curta história, mas uma grande metáfora: a capacidade de colocar em outra pessoa toda a nossa amorosidade, todo o nosso amor, toda a nossa vida. “Dei-te quanto pediste. Ingênua e nua, minha alma toda ficou sendo outrora tua, unicamente tua”, diz o poeta numa expresão romântica, mas de uma revelação profunda e grave, dar a alguém toda a vida que se tem.
Quando infantes, bebês de colaço, como dizem os portugueses, colocam toda a sua vida na pessoa de sua mãe ou de qualquer outra que ofereça a função materna. É claro, é inevitável, pois o ser humano nasce numa situação de vulnerabilidade e fragilidade intensas, sem condições de sobreviver sem o Outro, esse Outro que chamo de “Salvador”, pois de fato, não sabemos nada dele até então. Coloca-se, na pessoa da mãe, todo o amor e ódio; a mãe por sua vez, recebe e dá de volta toda a capacidade para começar a lidar com todos esses sentimentos. Ato contínuo, a vida vai se fazendo e a pessoa vai mantendo em si seu amor próprio e dirigindo ao outro o que Freud chamou de “amor de objeto”, “libido de objeto”, ou seja, a capacidade de retirar amor de si e dar ao eleito do seu desejo. Bom, mas é sempre sensato lembrar que não se coloca todo o amor no outro, caso contrário, não se mantém dentro de si o amor próprio e a condição de desenvolver a autoestima e a futura separação/independência.
O poeta narra alguém que se entregou todo a alguém e ficou sem vida: “Pelo bem que te fiz, padeço agora a saudade do mal que me fizeste”. Há pessoas que, por imaturidade, escassez de vida psíquica, insegurança e carência exagerada, entrega tudo ao outro – como o dito popular cita, vende a alma pro diabo. Fica sem vida própria. O outro passa a ser ele mesmo. Essa é a loucura, a doidice, o “pobre moço” dos versos do poeta.
Estamos diante de uma questão importantíssima na vida de cada um, que é a necessidade de desenvolver individualidade, privacidade, amor próprio, independência, mesmo amando alguém. Somos seres juntos e separados, somos pessoas que caso entreguem toda a sua vida a outrem, cometem um “suicidio em vida”. Ninguém tem o direito de retirar todo o amor de si mesmo, e nós não podemos esvaziar a nossa amorosidade, pois se assim acontece, não sobra nada a não ser a falta de amor a si próprio e um grande sentimento de vacuidade.
Atualmente é muito comum falar em relações fusionais e de extrema dependência, como se os contatos humanos fossem idênticos aos com as drogas, por exemplo. Por quê? Porque desde criancinha imaginamos que encontraremos a pessoa ideal, salvadora, onipresente, onipotente e onisciente. Caso encontrássemos, realizaríamos a fantasia de autosuficiencia e jamais dependeríamos de alguém e não haveria conflito. “Eu me bastaria”! Doce ilusão. A vida é um exercício constante de capacidade de tolerar dependência e independência.
O poema de Guilherme de Almeida é uma sacada para um alerta — “padeço agora a saudade do mal que me fizeste”. Eu acrecentaria: do mal que fiz comigo também! Relação é uma dupla, uma responsabilidade mútua e não necessariamente uma vitimização.