“A onda vazia uma pausa, e então de novo se elevava, como alguém que dorme e cuja respiração vai e vem inconscientemente” – Virginia Woolf in, “As ondas”.
A leitura vivida e experimentada emocionalmente do brilhante conto de Clarice Lispector, “As Águas do Mundo”, de um dos seus livros mais impactantes, “Felicidade Clandestina”, mergulha numa profunda alegria de renascimento diante da carência afetiva de todos os humanos, nunca satisfeita — ainda bem! Está escrito numa prosa poética, característica da autora em toda sua obra.
O conto começa de imediato com uma questão angustiante: “Aí está ele, o mar, a mais ininteligível das existências não humanas. E aqui está a mulher, de pé na praia, o mais ininteligível dos seres vivos. Como ser humano fez um dia uma pergunta sobre si mesmo, tornou-se o mais ininteligível dos seres vivos. Ela e o mar”. Assim como todos nós.
Abre-se aí outra questão: conhecer, penetrar nas profundezas do ser, investigar o fundo dos nossos mares internos, calmos e revoltos, dos mares atuais e de tudo aquilo que está soterrado desde o nascimento e do antes do nascimento. “Ela olha o mar, é o que pode fazer. Ele só lhe é delimitado pela linha do horizonte, isto é, pela sua incapacidade humana de ver a curvatura da terra”, prossegue Lispector, levando o leitor a sentir e pensar: o absoluto, Deus, o infinito, são mares inalcançáveis? Inalcançáveis também são as camadas primitivas e arqueológicas da nossa mente. “A mulher hesita porque vai entrar”. Aonde? Nela, nos outros, enfim, na natureza alegre-trágica do ser humano. “A mulher não está sabendo, mas está cumprindo uma coragem… ela está sozinha. O mar salgado não é sozinho porque é salgado e grande, e isso é uma realização. Nessa hora, ela se conhece menos ainda do que conhece o mar. Sua coragem é a de, não se conhecendo, no entanto, prosseguir. É fatal não se conhecer, e não se conhecer exige coragem”.
A metáfora aqui aponta para coragem para se conhecer e também para não se conhecer; a covardia e o medo empobrecem a alegria e a dor implícita, como se a ignorância não doesse nem impedisse a liberdade para viver! “O cheiro é de uma maresia tonteante que a desperta de seus mais adormecidos sonos seculares”. Abro um parêntese para lembrar que o último órgão que se atrofia na espécie humana é o rinencéfalo, responsável pelo olfato. Curioso, não? O psicanalista W. R. Bion, no fim de sua vida, estava investigando as “memórias olfativas do feto”. Clarice captou, impressionante!
O conto vai se expandindo, quando a autora escreve: “A mulher é agora uma compacta e uma leve e uma aguda, e abre caminho na gelidez que, líquida, se põe a ela, e, no entanto, a deixa entrar como no amor em que a oposição pode ser um pedido”. A poesia clariciana anuncia um estado de “êxtase” — o mar fertiliza a personagem, que, entrando nas águas fecundas, encontra o nascimento, o renascimento, o verdadeiro encontro com o outro (mar) ou a metáfora do outro (humano), após o receio, o temor, mas a coragem de encontrar o amor-compartilhado.
“[…] abaixa a cabeça dentro do brilho do mar, e retira uma cabeleira que sai escorrendo toda sobre os olhos salgados que ardem”. É lúdico, é uma alegria rejuvenescedora que a faz beber com a concha das mãos grande goles de prazer e vida. “Mergulha de novo, de novo bebe mais água, agora sem sofreguidão, pois não precisa mais. Ela é a amante que sabe que terá tudo de novo […]. Agora sabe o que quer”. O amor compartilhado pelo ininteligível Mar renova a vida do personagem, ou metaforicamente renova a vida de todos nós, afinal como seria bom viver sempre entrando e saindo do “mar”, resgatando forças de vida nessa vida cheia de atropelos, desilusões, carências e estados automatizados de viver. É como sair e entrar num útero que provém liberdade para existir.
Clarice termina o conto com mais uma metáfora: “E agora pisa na areia. Sabe que está brilhando de água, sal e sol. Mesmo que o esqueça daqui a uns minutos, nunca poderá perder tudo isso. E sabe de algum modo obscuro que seus cabelos escorridos são de um náufrago. Porque sabe, sabe que fez um perigo. Um perigo tão antigo quanto o ser humano”.
“Não se conhecer, ou não conhecer o outro exige de Clarice a busca constante, a constante atenção” – Marina Colassanti