“Quando comparo esses quatro anos de minha meninice a quaisquer outros quatro anos de vida adulta, fico espantado do vazio destes últimos anos em cotejo com a densidade daquela quadra distante.”Manuel Bandeira, 2002 (1954)
A estruturação e subjetivação de um ser humano advém da influência do outro, das introjeções parentais, da cultura e, principalmente, dos objetos (pessoas) que ofereceram a função materna e paterna. De antemão, quero frisar sobre as falhas de objetos de identificação no nosso mundo moderno, daí as questões atuais quanto à formação da identidade dos nossos jovens nesse mundo onde fica gritante os fenômenos de desintegração da família, dos governos, da justiça e da ética.
A literatura traz uma contribuição necessária para entendermos a importância da infância e da adolescência, principalmente, como lembra Mell Brites em seu belo livro: “As crianças de Clarice”, Editora Unicamp, 2021.
Logo na introdução – “O íntimo Caos”, a autora traz passagens de três dos nossos queridos clássicos escritores: Clarice Lispector, Manuel Bandeira e Graciliano Ramos. De Clarice, lemos: “Nada posso fazer, parece que há em mim um lado infantil que não cresce jamais”. Penso que esse lado infantil que “não cresce mais” norteou seus contos em idade adulta, pouco antes de falecer, que por meio da rememoração e fantasias trouxeram belas inferências e conhecimento da tenra idade. Aprendemos, ali, como Clarice trata o desamparo, a culpa, as brincadeiras infantis, sua condição de fragilidade e seu ímpeto e coragem para se tornar adulta – uma mulher.
Já Graciliano Ramos, particularmente em seus livros “Infância” e “Vidas Secas”, mostra a angústia e o desespero de um menino que já intuía o sofrimento do ente nordestino, subjugado, explorado, massacrado por um coronelismo destrutivo e desrespeitoso com os direitos humanos. “Infância”, na letra de Mell Brites, “dá destaque significativo à violência que o assombrou (Graciliano) durante tantos anos: há quem veja a obra como uma denúncia das injustiças das quais eram vítimas todos os que estavam na mesma condição do autor, ou como expressão de uma “anti-infância”, como afirma Marcos Mazzari.”
Bandeira também canta em prosa e verso sua experiência infantil, em Pernambuco. Acrescenta Mell: “Em ‘Profundamente’… ao assumir a visão infantil, o poeta reencontra-se consigo mesmo, com o menino que foi um dia… em processo análogo ao que vive Clarice… Para ela, a cidade é também palco de um tempo em que se vivia com humildade e de experiências que, para além de alegres ou tristes, continham uma força vital – a qual, se verá, será resgatada pelo próprio ato de rememoração”.
Com esses recortes, trago a importância da leitura, na literatura, pouco lida nos dias atuais, e como a própria é uma contribuição fundamental para a experiência do ser humano e sua existência, em busca de conhecimento, sabedoria, reflexões filosóficas, psicanalíticas e políticas.
“Vou fazer um pedido a vocês: todas as vezes que se sentirem solitários, isto é, sozinhos, procurem uma pessoa para conversar. Escolham uma pessoa grande que seja muito boa para crianças e que entenda que às vezes um menino ou uma menina estão sofrendo”. Citação de Mell Brites, de um fragmento de Clarice, in “A vida íntima de Laura”, 1983 (1974).