Há anos que vivo procurando as experiências precoces da mente, tanto em mim, nas minhas análises pessoais como na convivência diária com meus analisandos. Procuro também nos livros, hoje, nos textos literários além dos que analíticos. Outro dia li em Manoel de Barros, um dos maiores poetas do Brasil a seguinte frase: “Seja este um gosto que vem de detrás. Das minhas memórias fósseis. Ouvir estâmago (um desvio ortográfico de estômago – grifo meu) produz uma ressonância atávica dentro de mim. Coisa que sonha de retravés”.
Então, caro leitor, parece que é isso que ando procurando na minha vida de psicanalista. Logo após, leio uma estrofe do Manoel: “Sou um sujeito cheio de recantos/ Os desvãos me constam./ Tem hora que leio avencas./ Tem hora, Proust./ Ouço aves e beethovens./ Gosto de Bola Sete e Charles Chaplin”. Olha que maravilha de vida desse poeta em seu inquieto “Livro sobre o Nada”.
Nesse livro, Manoel de Barros se inspirou em Gustave Flaulbert, que sempre quis escrever um livro sobre o nada. Flaubert que em sua obsessividade criativa ficava dias procurando a palavra exata para descrever um estado de mente. Mas o livro de Manoel, diz ele, é um livro como “alarme para o silêncio”, “um abridor de amanhecer”. Isso Manoel! O psicanalista deve sempre estar à procura dos estados pré-primitivos da mente, daquilo que W.R.Bion chamou de “memórias olfativas”.
Procura-se sempre o que se esconde por detrás da vida pós-uterina. A memória involuntária de Proust e a livre associação de ideias de Freud são meios para se aprofundar na pesquisa do antes, do “it” da Clarice Lispector, do numena de Kant ou de sentimentos estranhos que realmente devem levar às “memórias fósseis” de que fala Manoel de Barros.
Mas me perdi, agora na escrita! Coloquei um título “a procura do quê”. A experiência psicanalítica, na qual tenho mais familiaridade junto com a leitura de textos vindos de Clarice, Proust, Flaubert, Virginia Woolf, Guimarães Rosa e Carlos Drummond, são as ferramentas preciosas para pensar o impensável, os estados de mente arquetípicos, aquilo que ainda não se pode pensar – sem falar, é claro, nas conversas entre analista e analisando que se revestem de ecos pretéritos e emoções ainda não nomeadas.
É isso que ando procurando no dia a dia da minha profissão. Dirão alguns colegas: esse analista está se expondo de modo autobiográfico, que coisa! Sim, claro que sim. A experiência verdadeira de análise atual repousa na intermitência de estados autobiográficos não só dos pacientes, mas também dos psicanalistas.
Análise é um encontro de almas, em conforto e em angústia, pressupondo que as experiências internas dos psicanalistas sejam mais analisadas do que as dos seus analisandos. Volto ao meu poeta, colega, Manoel, em seus versos: “Carrego meus primórdios num andor./ Minha voz tem vício de fontes./ Eu queria avançar para o começo/ chegar ao criançamento das palavras”.