Um permanente drama na experiência humana, vivido na própria vida e dentro da cena psicanalítica, é como desenvolver um arranjo mental para tornar menos conflitiva a questão da racionalidade e dos afetos. Tema que perpassa toda a história do Homem desde a antiguidade, e que tem na segunda metade do Séc. XIX, ou seja, a intrigante, complexa e difícil Era do Iluminismo e do Romantismo.
Até então os afetos, os sentimentos, eram delegados às crendices, coisas do Demo, patologias psíquicas ou qualquer manifestação da des-razão. O homem científico, burguês, idealista, além de menosprezar as “manifestações do coração”, tinha uma postura rígida na qual a cientificidade era a solução dos problemas da humanidade.
A racionalidade e o desenvolvimento humano eram os fundamentos básicos do pensamento iluminista, trazendo transformações visíveis na sociedade de então, entre o fim do Séc. XVIII e o início do Séc. XIX. Aqui, vale a pena frisar a importância de filósofos como Descartes, Diderot, Montesquieu, Voltaire e Rousseau. Segundo Kalina Vanderlei Silva e Maciel Henrique Silva, em seu livro “Dicionário de Conceitos Históricos”, editado no Brasil pela Editora Contexto: “Todavia, a maioria desses pensadores compartilhava algumas ideias em comum: a defesa do pensamento racional, a crítica à autoridade religiosa e ao autoritarismo de qualquer tipo e a oposição ao fanatismo. Influenciado pela revolução científica do século XVII, principalmente pelo racionalismo e pelo cientificismo de Descartes, a maioria dos iluministas pregavam o papel crítico da razão, considerando essa a única ferramenta capaz de esclarecer a humanidade”
Logo depois, adentra na história das ideias, o Romantismo. O Romantismo que vai incluir o indizível, o que necessariamente não é da ordem do consciente, as paixões e emoções do sentir humano. A questão que sempre me intrigou foi que, tanto os Iluministas quanto os Românticos se desviaram para um modo de pensar absoluto – a Verdade está conosco, nós somos a Verdade.
Lembro de um autor amigo, psicanalista, Dr. Paulo Cesar Sandler que me aquietou quando trouxe a seguinte ideia: uma coisa são os iluministas e os românticos; outra coisa é o Movimento Idealista e o Movimento Romântico. Os primeiros são “pensadores fanáticos, absolutistas, arrogantes e pretenciosos”; a segunda ideia é que Racionalidade e Paixão é um conjunto que podem conviver sem pretensões fundamentalistas.
Isso me recorda a eterna rivalidade insana entre “machistas” e “feministas”. Enquanto a noção de machismo e feminismo encobrir a beleza da noção de masculino e feminino, essa briga será sempre uma contenda para medir o tamanho do Falo. O conhecimento já não comporta mais uma Escola Única, um só vértice de observação; o conhecimento é espiralar, é composto de transformações permanentes e não uma horizontalidade vazia, uma idealização de que tudo tem causa e consequência. Freud disse um dia que tudo que ele pesquisou, tudo que ele estudou e observou, os poetas tinham chegado antes. Heisenberg ganhou um Nobel de Física com a “Teoria das Incertezas”. A relatividade não é uma desculpa racional, é a essência de tudo, e se tudo é relativo, a realidade psíquica também o é. As emoções e a racionalidade são um conjunto que podem conviver no sentido de expandir o conhecimento.
Relendo alguns trechos da “Montanha Mágica” de Thomas Mann, vejo nesse romance, um dos maiores da Literatura Universal, o sofrimento de um homem que inquieto, ansioso e insatisfeito com “a planície”, começa a procurar a “montanha” como uma nova forma de pensar as questões existenciais. Malcolm Bradbury, em seu livro “Mundo Moderno – Dez Grandes Escritores”, Cia. das Letras, escreve: “O tema do livro – segundo Mann, o ‘fascínio da morte, o triunfo da desordem numa vida fundamentada na ordem’ representa um conflito essencial entre as duas concepções de arte e de artista, a clássica e a romântica”. Thomas Mann já não se satisfazia com a “ordem germânica” e com um modo de ver a vida sob um prisma fechado, saturado e de uma rigidez burguesa e uma intelectualidade arrogante. A Montanha Mágica é a metáfora da incerteza, do mistério do corpo e da alma, do tempo interior e exterior. Mann, como Proust e outros, tinham a consciência acentuada da diferença entre o tempo interior e o exterior, o subjetivo e objetivo, e considerava o relógio e o calendário registros imperfeitos da consciência e do espírito humano, salienta Malcolm em seu livro.
Nosso mundo atual, passados o período clássico, moderno, realista e pós-moderno, parece que ainda não responde às questões de uma liberdade criativa em direção ao desenvolvimento humanista. São notórios os movimentos internacionais de volta ao Nacionalismo convivendo com estruturas de pensamento religioso de forma fundamentalista. Estamos ainda sem sair do Caos e procurando uma nova forma de existir que respeite os direitos humanos!
Entre nós, volto ao querido poeta Manuel Bandeira, modernista brasileiro que nos intriga e faz refletir com seu provocante poema “Poética”:
“Estou farto do lirismo comedido/ Do lirismo bem-comportado/ Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente (protocolo e manifestações de apreço ao sr. Diretor.
Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário o cunho vernáculo de um vocábulo.
Abaixo os puristas
Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais/ Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção/ Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis.
Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora de si mesmo.
De resto não é lirismo/ Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante exemplar
Com cem modelos de cartas
e as diferentes maneiras de
agradar às mulheres, etc.
Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbedos
O lirismo difícil e pungente dos bêbedos
O lirismo dos clowns de Shakespeare
– Não quero mais saber do lirismo que não é libertação”.