Artigo – Congresso Brasileiro de Psicanálise – 04/11/13

Psicanálise da vida cotidiana – Congresso Brasileiro de Psicanálise

Carlos de Almeida Vieira

   No final de setembro estive na cidade de Campo Grande, durante quatro dias, no XXIV Congresso Brasileiro de Psicanálise. Encontro patrocinado pela Federação Brasileira de Psicanálise e pela Sociedade de Psicanálise do Mato Grosso do Sul. O tema: Medo e Paixão, o Ser Contemporâneo, e Totem e Tabu. 
Campo Grande é uma bela cidade, predominantemente arborizada, ruas e avenidas limpas, bem cuidadas, com bastantes ciclovias, parques enormes e um povo com um temperamento afetivo, que recebe o “estrangeiro” com muita hospitalidade e carinho. 

   No Museu do Índio houve uma mesa redonda versando sobre a importância da cultura indígena na região e no país, e mais importante, sobre a necessidade do respeito, consideração e acolhimento à população selvícola. Não por coincidência mas talvez por consciência, os trabalhos sobre a cultura indígena casam com o texto de S. Freud – Totem e Tabu – mostrando nosso funcionamento mental primitivo e a importância de estudá-lo. Nisso, acho que os índios têm muito o que nos ensinar quanto à sua mitologia, costumes, tabus e totens. A cultura indígena é uma travessia do animal ao humano, e mostra às vezes que os povos primitivos são, em alguns aspectos, mais sábios do que nós, os aculturados (?). 

   Medo e paixão, o contemporâneo foi o tema alto do congresso. Por que, analistas do Brasil, novecentos presentes, estiveram preocupados durante cinco dias com questões puramente afetivas nos dias de hoje? Sabemos, através da filosofia, ciência, literatura, sociologia, antropologia, que nunca o progresso científico e tecnológico esteve em tamanha em expansão, como está, aqui no Brasil e no mundo. Sabemos que esse mesmo progresso, por incrível que pareça, não é acompanhado de outro – o crescimento psíquico humano. Vivemos uma época de consumismo, de mentalidade onde predomina o Ter e não o Ser, de medo de estabelecer vínculos afetivos e relações duradouras.

    As relações atuais, entre os humanos, são relações de consumo do outro, de apropriação, de uso. São relações de vampirismo humano, de viver às custas dos outros, semelhantes, o prazer pelo prazer. Aspecto bem diferente daquele que Freud chamou de “relações genitais”, ou seja, relações de parceria, em que um fecunda o outro, de troca afetiva, de tolerância às diferenças, enfim, de criatividade. Hoje, os consultórios estão repletos de pessoas, realizadas “profissionalmente” e financeiramente, mas vazias em solidão e depressão, mostrando um sintoma – medo da ligação amorosa. A ligação que inclui respeito, consideração e junção criativa. Consequência óbvia: a vida é atendida nos prazeres materiais, físicos, sensuais, mas empobrecida no aspecto humano, afetivo, amoroso, determinando uma “vida em branco”, sem paixão, sem compromisso afetivo, por isso, sem esperança e crença na realização psíquica e emocional.
Não há mais crença na ética, na lei, na política, na civilidade, nos direitos básicos da sobrevivência. Não há também um compromisso dos governos e governantes, pois uma vez no poder, o projeto maior é o enriquecimento, na maioria das vezes ilícito, e um descarado sentimento de frieza quanto à sua responsabilidade social. Sem falar, infelizmente, na perda da coesão familiar, criando dificuldades de contribuir para uma ética interna em seus filhos. O jovem atual identifica-se com o quê? Gostar transformou-se em “ficar”, e “ficar” realiza não um prelúdio ao namorar, mas a exercitar o prazer voraz, faminto de usar o outro para satisfação própria atendendo seus “ideais narcísicos, egocentristas”. Podemos apreciar esse modelo também no social e no político – os políticos e governantes “ficam conosco” até após a vitória nas eleições, e depois nos descartam e passam suas vidas governando em causa própria. 
Então, medo e paixão, ou medo da paixão, parece ser um fenômeno natural nos dias de hoje. Como alguém tem coragem de viver uma paixão, transformá-la em amor, quando a expectativa atual é consumir a relação? Uma grande maioria das pessoas é hoje viciada, não em drogas, mas em pessoas, e as usa e funciona de maneira semelhante ao dependente químico. Quando aquela “droga” não fornece mais prazer, troca-se de drogas, no caso, troca-se de pessoas. E nesse troca-troca o mundo interno fica vazio, sem significado e profundamente depressivo. 

    Estamos voltando ao tempo do vampirismo? Estamos regredindo no sentido de tornarmo-nos mais animais do que humanos? É urgente, na vida atual, não mais pautar as relações no modelo de “prazer pelo prazer”, mas sobrepor o espiritual, o afetivo. 

    George Bataille, citado por Eliane Robert Moraes em seu livro Perversos, Amantes e Outros Trágicos, Editora Iluminuras, escreve: “…quando a cabeça reverte-se em sexo, o homem perde a singularidade espiritual que o rosto lhe confere para obedecer unicamente o regime intensivo da matéria.” Amplia-se, assim, a dimensão física do motivo capital: da cabeça devoradora, marcada pela intensidade de uma fome que não termina jamais, passa-se a cabeça que é “boa de comer”, prossegue a autora. 

   O medo da paixão, do amor, do vínculo afetivo é uma verdade inexorável, pois amar implica o risco de perder também. No entanto, a medo atual, quase fóbico, é decorrente e consequência de amor canibal, voraz, que se apossa do outro como “objeto”, às vezes, “abjeto”, pois a intenção é tão somente de usar, abusar e descartar. 

    Nós, psicanalistas, estamos convencidos, e o congresso reafirmou isso, que a qualidade das relações, vínculos emocionais e afetivos merecem uma transformação, caso contrário estaremos assistindo a um aumento considerável de adição às drogas e às pessoas, como também de síndromes depressivas e doença do pânico. 
O nosso poeta mineiro Affonso Romano de Sant’Anna, companheiro de outros também de Juiz de Fora, exprime em seus versos, uma leitura atual da civilização pós-moderna.

Ironia Canibal

   “Pelas minhas contas, devo / ter comido, até hoje, 4.237 frangos e galinhas, / 22 bois / e exaurido um pequeno lago de / lulas, trutas, ostras, lagostas e sardinhas. / Passarinhos, jamais. / Só em terrinhas, e mesmo assim, na França. / Vegetariano e feminista eu sou, contudo. / Por isto, em festa ou mudo, / comi também 69 mulheres – com pena e tudo.” 
    Que a paixão seja sana, por consequência menos fóbica; que após a paixão, encontre o casal, a travessia de uma história amorosa; que possa tolerar as diferenças, a consideração e o respeito pelo outro; que nós, animais-humanos, possamos ser mais humanos que animais. Essa é a sabedoria para criar o homem do Século XXI, um homem que possa resgatar a amorosidade frente aos progressos científicos e tecnológicos da atualidade. 
O filósofo romeno Cioran, conhecido como um grande prosador francês, em seu livro Breviário de Decomposição (Editora Rocco), deixa essas palavras para a reflexão: “Quando viste em toda convicção uma desonra e em todo apego uma profanação, já não tens direito de esperar, nem neste mundo nem no outro, uma sorte modificada de esperança. Deves escolher um promontório ideal, ridiculamente solitário, ou uma estrela farsante, rebelde às constelações. Irresponsável por tristeza, tua vida ridicularizou seus instantes; mas a vida é a “piedade da duração”, o sentimento de uma eternidade dançarina, o tempo que se supera e rivaliza com o sol”.

 

Carlos de Almeida Vieira –  Médico, Psiquiatra
Psicanalista da Sociedade de Psicanálise de Brasília – SPB
Membro da Federação Brasileira de Psicanálise –  FEBRAPSI
International Psychoanalytical Association – IPA/London

 

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