Cinzas de corpos inocentes

“Quando os corpos passarem
Eu ficarei sozinho
Desfilando a recordação
Do sineiro, da viúva e dos microscopistas
Que habitavam as barracas
E não foram encontrados
Ao amanhecer.
Esse amanhecer
Mais que a noite.”

Assistimos, há tempos, notícias escabrosas vindas da África; mais recentemente, os trágicos acontecimentos entre Ucrânia e Rússia; e agora a animalesca destruição entre palestinos (terroristas) e israelenses, coroando a situação mundial na prevalência das pulsões de destruição, da pulsão de morte, onde o ódio continua predominando sobre o amor, deixando qualquer pessoa de sensibilidade maior sentir os estertores da iminência de “fim de mundo”.

Carlos Drummond de Andrade, in “Sentimento do Mundo” (1940).
Se formos mais a fundo, além dos fatos concretos, desembocamos nas camadas animalescas do dito “ser humano”; nos subterrâneos da mente que Doistoiéviski descreveu em sua prosa poética, trágica e melancólica em “Memórias do Subsolo”, obra que já cantava os elementos submersos do inconsciente, que Freud desenvolveu posteriormente.

Dante, em sua poética obra, “A Divina Comédia”, detalhou sua passagem pelo “inferno”, os tipos mais perversos, psicóticos, corruptos, vorazes e animalescos da natureza humana. Clarice Lispector, em “A Paixão segundo GH”, encontra a “barata”, e num estado apofântico, toma um susto ao constatar o impulso homicida e sua identificação com os ancestrais da natureza humana, particularmente com a indiferença afetiva e os movimentos destrutivos da “Burguesia”, movidos pela violência da “pulsão oral sádica”, através da inveja e da voracidade.
Quem somos nós? Humanos e baratas, ou seja, um paradoxo entendido como as duas faces de uma mesma moeda — a natureza humana-animalesca!

As cinzas dos corpos dos nossos semelhantes se acumulam como produtos da violência do preconceito: raça pura, ideal capitalista perverso, fascista, nazista, colonizadores, burgueses, extremistas de direita e de esquerda, enfim… é preciso matar uma população que dificulta a manutenção do Poder, é necessário diminuir os viventes escravizados ou continuar escravizando para a manutenção do status quo!

Que o leitor, caso tenha coragem e disponibilidade de sentir o que nos aflige nesse momento de guerras e destruições, reflita diante dos últimos acontecimentos. É preciso ultrapassar o susto das notícias e lermos a nós mesmos, também reconhecendo nossa humanidade-animal nesse momento de “prenúncio apocalíptico”. Deixo para mais reflexão um poema de Álvaro Alves de Farias, nosso poeta da Geração 60, preso cinco vezes por decantar poemas no Viaduto do Chá, em São Paulo-SP:

Sobreviventes
Restará o inseto,
O frágil decomposto na terra.
Porque da matéria existirá apenas o ido
Na sobrevivência de existir no vácuo.
E de noite
Ficará o último silêncio em todas as bocas,
A noite sem noite batendo no teto do mundo.

O inerte de toda vida derramado
Entre veias metálicas.
Nos olhos de vidro trincados
Nascerá um vulto entre todos,
E na primeira árvore restará um grito,
Tendo nos braços as chagas
Nos pés os finais de todas as mortes.

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