Civilidade?

Civilidade, segundo o Aurélio, “é um conjunto de formalidades observadas pelos cidadãos entre si e em sinal de respeito mútuo e consideração”.

Respeito mútuo e consideração, duas virtudes complicadas e difíceis de serem exercidas. De saída, podemos entender “respeito mútuo” com um comportamento que exige da pessoa um quantum de renúncia do seu narcisismo, do seu egoísmo para que o outro seja reconhecido, “considerado” além da sua própria pessoa.

Quando se nasce, segundo o velho e eterno Freud, toda a criança é revestida de “energia narcísica”, ou seja, o mundo é a projeção das suas necessidades e desejos. O bebê não está ainda interessado e nem reconhece sua mãe como o “outro”, como uma pessoa separada dele; vai sempre em busca de ser atendido, e a outra pessoa só tem sentido se puder satisfazer seus anseios. Em outras palavras, o narcisismo, o amor por si, o interesse por sua própria pessoa dominam a cena. Quando frustrada, a criança revela já um comportamento de ódio, raiva e agressividade em direção aquele que a desapontou.

Todo esse comportamento é natural, é esperado, pois a criança, ou seja, nós, nascemos carentes, necessitados, sem condições de sobrevivermos senão com a ajuda do outro. O outro, no caso os pais, ou melhor dizendo, a mãe, alguém mais importante, mas note bem caro leitor, não a mãe, ela mesma enquanto pessoa separada, mas a mãe como uma extensão, como um espelho, que tem a finalidade de ser aquilo que se espera. Esperar aí, talvez não seria a palavra adequada, seria melhor falar de exigência. “Eu exijo que você tenha tudo o que eu preciso”. Logo, voltando às virtudes descritas acima, é impossível respeito mútuo e consideração.

Acontece, dando um salto no tempo, que alguns adultos, ou mesmo alguma cultura, sobrevalorizem o egocentrismo, o egoísmo patológico, a egolatria, como finalidades últimas das suas exigências existenciais. Vivemos, nesse mundo pós-moderno, a despeito do desenvolvimento tecnológico evidente, uma regressão para as relações de uso, de voracidade, de modelos vampirescos onde os outros são como os bebês, extensões das nossas vontades.

Consequência inevitável: a cultura do humanismo perde espaço para a cultura do barbarismo. Somos hoje, sem sombra de dúvida, o animal que mais mata seu semelhante, e o animal que perde seu par implícito, o humano. Sempre me refiro à expressão “animal humano” para enfatizar e não esquecer nosso lado primitivo, animalesco, que só com a cultura pode crescer e se desenvolver para “relações de troca, de parceria, de consideração mútua”, fato que a cada dia estão mais ausentes.

Exemplos aparentemente bobos mostram-nos a prevalência do “narcisismo” sobre o “social-ismo”, como escreve W.R.Bion em seus escritos psicanalíticos.

Outro dia, passeando pelas ruas e pelos os shoppings da vida, notei alguns comportamentos típicos: faixa de pedestre é evidência da existência do outro, é um efeito civilizador que o motorista precisa ter. Sustos, acidentes, acidentes traumáticos, são acontecimentos que a toda hora vemos. Os motoristas predominantemente narcísicos não acham, acreditam, que a rua é toda sua; que seu automóvel não é um meio de locomoção e facilidade para as distâncias, é um objeto que eles exercem um poder absoluto tal qual “sua majestade, o Bebê”. Fila para idosos, é um fenômeno engraçado: havia um homem, idoso, portando uma dezenas de boletos a serem pagos, para os outros, não pagamentos dele mesmo! Surpresa: esse homem ganha dinheiro para fazer pagamentos de outras pessoas, usufruindo de sua condição de ser da terceira idade. Uma mulher bem vestida, mais parecia com uma “dondoca”, estaciona seu carro em fila dupla para pegar um objeto numa joalheria; outra jovem, linda e esbelta estaciona na vaga reservada para cadeira de roda, ou situações de urgência qualquer. O “mauricinho”, filhinho de algum poderoso, estaciona na diagonal, ocupando duas vagas como se pagasse dois IPVAs! Passeando dentro de um Shopping, três jovens sequer olham para frente; batem na gente e exclamam uma frase moderna de desrespeito: “foi mal tio”.

O leitor deve concordar comigo, e acho que deve ter mil exemplos da falta de civilidade do mundo atual. Somos massacrados a toda hora por esse “narcisismo perverso” onde não há espaço para respeito e consideração. O outro, a Alteridade não tem espaço no pós-modernismo; vivemos numa época na qual o individualismo, o uso das pessoas como se fossem drogas de consumo, fossem o verdadeiro sentido de vida. Penso que todos esses comportamentos estão bloqueados por conta de: uma família que cultiva “o sem limite” para seus filhos; uma educação precária, onde o foco é o crescimento intelectual, tecnocrata, e não a ética; uma justiça cada dia mais injusta, onde os direitos básicos são desconsiderados e os perversos são livres de quaisquer penalidades; um governo que não olha para o povo, para as necessidades elementares, e cada dia mostra sua insensibilidade aos direitos humanos! O que se ensina nos dias de hoje? Falcatruas, corrupção, descrença na arte da política, atitudes de verdadeiro desrespeito e consideração pelos eleitores, sedentos por serem atendidos nas “promessas de campanha”. Existem poucas pessoas hoje, que podem servir de modelo para uma identificação sana dos mais jovens, e a consequência disso é a conduta bárbara e perversa nas relações humanas. 

Lembro agora, lamentavelmente, dos versos de Bandeira em seu poema – “Desencanto”: 

“Eu faço versos como quem chora
De desalento… de desencanto…
Fecha o meu livro, se por agora
Não tens motivo nenhum de pranto.

Meu verso é sangue. Volúpia ardente…
Tristeza esparsa… remorso vão…
Dói-me nas veias. Amargo e quente,
Cai, gota a gota, do coração.

E nestes versos de angústia rouca
Assim dos lábios a vida corre,
Deixando um acre sabor na boca.
– Eu faço versos como que morre”. 

 

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