Diversidade sexual, de gênero, familiar

Estivemos presentes ao XII Diálogo Latino-Americano Intergeracional entre Homens e Mulheres, promovido pela Diretoria Científica da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP) e pelos Comitês Mulheres e Psicanálise (COWAP) da América Latina e junto à SBPSP, coordenados, respectivamente, por Cândida Sé Holovko e Cristina Cortezzi Reis. O evento, nesta edição com o título: “Desafios da Psicanálise Frente a Novas Configurações Sexuais e Familiares”, foi realizado em São Paulo nos dias três e quatro de junho de 2016, e contou com a apresentação de 12 temas livres (trabalhos selecionados) e de 14 palestras de estudiosos e especialistas convidados, constituindo-se uma oportunidade excepcional de reflexão e comunicação integralmente voltada para essa temática.1

Estamos vivendo um momento ímpar na história da humanidade, particularmente pela multiplicidade de transformações ocorridas no último século – teorização sobre o inconsciente e sobre a sexualidade infantil, feminina/masculina; mudanças nas representações e relações de gênero; processos de globalização; invenção de métodos contraceptivos e de técnicas de reprodução assistida; desenvolvimento científico voltado para as intervenções sexuais (hormonal e cirúrgica); fortalecimento de movimentos em prol dos diretos das mulheres e da comunidade LGBTI, com suas respectivas conquistas em termos de mudança de mentalidades, legislação e políticas públicas. A dita revolução sexual, iniciada nos anos 60 do século passado, parece estar chegando ao seu ápice embora este não seja um patamar homogêneo e consolidado, uma vez que existem países e grupos que convivem “relativamente bem” com as diferenças e outros que ainda criminalizam as diferenças de sexualidade, de gênero, de famílias.2  

Para nós, psicanalistas, que nos dedicamos ao ofício de conhecer e interagir com as mais diversas formas de subjetivação dos seres humanos, o desafio é grande. Ao lado de um sólido edifício teórico psicanalítico, acumulado historicamente, vemo-nos convocados a fazer novos e intermináveis questionamentos que abrem um vasto campo de pesquisas e reflexões, a partir de nossa clínica cotidiana.
Dentre as questões abordadas no evento, destacamos algumas que merecem especial atenção:

a) questionamento de um alinhamento automático entre sexo, identidade de gênero e escolha de objeto/orientação sexual – ou seja, o nascimento com uma determinada genitália (fêmea/macho) não implica uma determinada pré-identificação de gênero (feminino/masculino) e uma heterossexualidade. A contemporaneidade vem abrindo espaços para os sujeitos construírem sua subjetividade a partir de diversas composições entre sexo, identidade de gênero e orientação sexual;

b) questionamento dos binarismos sexuais e de gênero – Letícia Glocer Fiorini, psicanalista argentina com intensa produção intelectual cujos trabalhos tem sido base para grande parte das reflexões atuais, enfatiza a coexistência de duas lógicas nos processos de subjetivação: a binária e também a da pluralidade sexual e de gênero. Assim, às vivências de feminino/masculino, heterossexual/homossexual, juntam-se vivências de transexualismo/transgênero, travesti, intersexo, as autoidentificações como gênero fluido, bigênero, gênero neutro e, também, as vivências de bissexualidade, pansexualismo e assexualismo.
c) questionamento das funções materna e paterna, que tendem a ser associadas ao gênero – com a diversidade de famílias, que se estendem na contemporaneidade para formas homoparentais (formadas por duas mães e por dois pais), aprofunda-se a discussão sobre a função básica de cuidados e a função terceira, que abre para o corte, o limite, a simbolização, ambas podendo ser exercidas por qualquer adulto, independentemente do gênero.

d) questionamento da diferença sexual como a marca estruturante da subjetividade – a marca da diferença sexual convive com outras marcas, igualmente importantes: de deficiências/características físicas; socioeconômicas e culturais; raciais e étnicas; religiosas; político-ideológicas. Cada sujeito constrói sua subjetividade única e singular, a partir de séries complementares – constitucional (hereditário e congênito), meio ambiente na infância, situações adultas e dimensão cultural e histórica.

e) revisão e atualização da resolução do complexo de Édipo – na atualidade busca-se ampliar o sentido do complexo de Édipo para além da família nuclear e da conjugalidade heterossexual, enfatizando-se para a sua resolução os significados de aceitação da castração e reconhecimento da alteridade. Isto leva a um questionamento da ideia clássica de que uma resolução edípica passa pela identificação da criança com o parental do mesmo sexo e pela “superação” do desejo em relação ao parental do outro sexo, com respectiva substituição de objeto no âmbito de uma heterossexualidade.
Apesar de estas questões, em maior ou menor medida, estarem presentes na vida privada de muitos de nós, com seus respectivos dramas, dores, conquistas e orgulhos, nosso tempo traz uma promessa de legitimidade e legalidade inéditas para tais vivências, com a consequente expectativa de novas possibilidades de desenvolvimento e realização do humano.

O encontro proporcionou uma ótima oportunidade para a troca de ideias e experiências, apresentadas por excelentes estudiosos da América Latina e também de Portugal. Além de psicanalistas, tivemos ainda a presença de antropólogos, sociólogos, médicos e artistas, formando um verdadeiro mosaico de informações e conhecimentos capazes de nos ajudar a compor um panorama de sujeitos observadores e também objetos de investigação, uma vez que somos produtores e, simultaneamente, moldados pela cultura. Mais uma vez, somos convocados a buscar entendimentos que localizem a pluralidade de sentidos e significados, desde um ponto de vista não-normativo, e sim libertário.

Durante o evento, ocorreu o lançamento do livro “Psicossexualidades – feminilidade, masculinidade e gênero”, de Teresa Haudenschild (coordenadora do Cowap Brasil), com prefácio de Teresa Lartigue e apresentação de Ana Maria Rocca Rivarola, pela Ed. Escuta.

O livro Parentalidades y Género: Su incidencia en la Subjectividad, organizado por Patricia Alkolombre e Cândida Sé Holovko, Ed. Letra Viva, B.A, com introdução de Virgínia Ungar e Fernando Orduz, previsto para ser lançado no evento, não chegou a tempo em decorrência de trâmites alfandegários. Esta publicação contém trabalhos apresentados no XI Diálogo Latino-americano, realizado em 2014, em Buenos Aires, e já pode ser adquirida junto à SBPSP.
Não menos importante foi conhecer mais de perto o trabalho do COWAP, mediante a reunião de seus representantes e integrantes de países da América Latina e de estados do Brasil. Apesar de a sigla ainda se reportar a um Comitê de Mulheres e Psicanálise, o COWAP é hoje um grupo misto, entusiasta e bastante dinâmico, com uma vasta produção científica ao redor do mundo e, muito especialmente, na América Latina, voltado para as temáticas de sexualidade, feminilidade, masculinidade, gênero, configurações familiares e parentalidades.

 

 

1Os Diálogos Latino-americanos tiveram a sua primeira edição em 1999, na Argentina, sob a coordenação de Mariam Alizade (1943 – 2013), uma das pioneiras na produção intelectual recente sobre gênero e sexualidade feminina no âmbito da IPA. Alizade foi a primeira presidente do COWAP-IPA, na gestão 1998-2005.  

2O I Festival Internacional de Cinema LGBTI (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Pessoas Trans e Intersex), realizou-se em Brasília, entre os dias 20 e 26 de junho de 2016, e foi organizado por embaixadas de diversos países. Segundo o folder de apresentação do evento, ainda existem 74 países que criminalizam a homossexualidade, sendo que a pena de morte para relações consensuais entre adultos do mesmo sexo é prevista ao menos em 5 deles. Além disso, a comunidade LGBTI é comumente alvo de assassinatos, agressões e discriminações em muitas sociedades. 

 

Almira Rodrigues e Márcia Vasconcelos são membros associados da Sociedade de Psicanálise de Brasília, e integram o Comitê Mulheres e Psicanálise (COWAP) e coordenam o Grupo de Estudos “Sexualidade e Gênero”, ambos da SPBsb.  

Artigo publicado no Boletim Informativo da SPBsb, Ano19, nº 2,2016

 

Os Diálogos Latino-americanos tiveram a sua primeira edição em 1999, na Argentina, sob a coordenação de Mariam Alizade (1943 – 2013), uma das pioneiras na produção intelectual recente sobre gênero e sexualidade feminina no âmbito da IPA. Alizade foi a primeira presidente do COWAP-IPA, na gestão 1998-2005.  

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