
Participantes falaram sobre a mulher, a obra e o legado de Virgínia Bicudo
Cerca de 100 pessoas foram ao auditório da Cultura Inglesa, na Asa Sul, para assistir à exibição do filme Virgínia e Adelaide, no último sábado (31). O evento, promovido pela Sociedade de Psicanálise de Brasília (SPBsb), por meio da Diretoria de Comunidade e Cultura (DCC), teve como objetivo estimular reflexões sobre a trajetória de duas pioneiras da psicanálise no Brasil e os desafios enfrentados por elas.
Após a sessão, o público acompanhou um debate conduzido por Carlos Frausino, diretor da DCC, com a participação da psicanalista Regina Mota e da atriz Gabriela Correa, que interpreta Virgínia Bicudo no longa. A conversa abordou os impactos históricos, sociais e subjetivos das personagens retratadas.
Virgínia Leone Bicudo teve sua trajetória marcada pelas transformações de São Paulo, pelo início da psicanálise no Brasil e pelo movimento modernista. Sua origem, descendente de escravizada, fazendeiro e imigrante, simboliza a diversidade cultural brasileira. “Além de psicanalista, foi educadora, médica, socióloga e divulgadora científica, contribuindo para a institucionalização e expansão da psicanálise no país. Sua sensibilidade e capacidade de transformar experiências em ações fizeram dela uma figura importante na cultura brasileira e na compreensão das questões de classe, gênero e raça”, afirmou Carlos Frausino.
Depoimentos
A interação entre os participantes durante o debate aconteceu de forma presencial e online. Na tela, estavam presentes o diretor do filme, Jorge Furtado, o sociólogo Marcos Chor, além de estudiosos e psicanalistas.
O diretor Jorge Furtado provocou o público e os psicanalistas presentes com uma reflexão sobre o olhar na prática clínica: “A gente imagina o que as personagens sentem, elas têm esse poder de transmitir isso com a imagem. E eu fico pensando se, atrás do divã, vocês psicanalistas não perdem algo precioso, que é o olhar, o rosto, o que o rosto diz quando as palavras não dão conta.”
A psicanalista e membro titular da SPBsb, Regina Mota, relatou que conheceu Virgínia Bicudo aos 25 anos, quando foi lhe pedir supervisão ao iniciar a formação em Psicanálise em São Paulo. “Vocês deveriam ouvir a voz da Virgínia, uma voz irônica, porque ela tinha esse humor bem peculiar. Era potente, com uma presença forte e contundente. Tinha um sotaque paulistano diferente do meu, que sou carioca, algo que parecia até impositivo. Mas era a personalidade dela. Determinada, com objetivos muito claros a serem alcançados”, contou ao público.
Além disso, Regina Mota disse que, em diálogo com Virgínia sobre determinado acontecimento, se algo acontecesse ela precisaria de mais dez anos de psicanálise. E Virgínia respondeu de uma forma que lhe tocou.
“E você acha que vai poder contar comigo? A resposta foi dilacerante para mim porque parecia que ela não queria mais me atender, mas, na verdade, o motivo era a idade avançada dela. Ela não sabia se teria muitos anos ainda. E eu estava numa fase da vida em que a gente acha que os objetos de amor seriam eternos”, finalizou Regina.
Outras falas emocionadas marcaram o encontro, como a da psicanalista Sílvia Valadares, que lembrou dos últimos dias de vida de Virgínia com emoção. “Ela me segurava pelo braço, não queria que eu fosse embora. Dois dias depois, ela morreu. Essa imagem me acompanha até hoje”.
Pensamentos contemporâneos
Para a atriz Gabriela Correa, dar vida a Virgínia foi mais que um papel, foi um exercício de entendimento histórico e político. “É muito absurdo pensar numa existência que ganha novas dimensões a cada ano. Virgínia estava nos anos 1940 falando de coisas que só agora estão sendo pesquisadas: racismo, colorismo, saúde mental das mulheres e das crianças pobres e pretas”, afirmou.
A psicanalista e diretora de Comunicação da SPBsb, Paola Amendoeira, ressaltou o impacto da trajetória de Virgínia como mulher negra no Brasil do século XX. “Ela não saiu do nada. Ela vem de um contexto histórico e de uma história material do país, onde uma mulher negra conseguiu chegar a uma universidade e produzir pensamento. Isso está vivo em tudo que ela faz”, disse. “A vida dela e a forma como ela se pensa no mundo interno e externo são sensacionais”, expôs Paola.
O evento reafirmou a proposta da SPBsb de promover o diálogo entre psicanálise, cultura e memória histórica, ressaltando o legado de figuras centrais como Virgínia Bicudo e Adelaide Koch. Mais do que uma homenagem, a tarde foi uma celebração da escuta, da resistência e da construção de um pensamento crítico sobre o Brasil de ontem e de hoje.