Psicologicamente, o sentido do termo Bovarismo, nasce do filósofo francês Jules de Gaultier, em seu estudo “Le Boverysme, la psychologie dans l’oeuvre de Flaubert (1982), intrinsecamente ligado ao universal romance “Madame Bovary”. Flaubert, nessa época, tinha uma crítica ferrenha aos “Burgueses”. A burguesia provinciana, meio do qual o escritor fazia parte, veio da época de Luís Felipe, conhecido como o “rei burguês”, em função de atitudes, modos e maneira de vestir burgueses, dominante na classe média e que a distinguia da classe operária e da nobreza. Flaubert tinha pela burguesia um modo de pensar que a definia como uma característica de superficialidade cultural e psíquica, ambição desvairada, uma cultura medíocre e um apego às coisas materiais. Sua marca, penso eu, era a inveja e a cobiça.
Sabemos que uma sociedade que se mantém sob a égide da inveja e da voracidade, tende a ser uma sociedade composta por pessoas pobres psiquicamente, e que só enxergam o prazer e os bens materiais. Na época, em França, era comum essas pessoas serem da classe média e da classe média baixa, entretidas em hábitos superficiais de modismo e consumo sem qualquer crescimento humanístico e intelectual. A frivolidade, a falsidade, o comércio entre pessoas por interesses de poder, a aparência humana nos meios nobres, os trajes da moda e as relações perversas, tudo isso, compunha aquilo que hoje chamamos de “mente líquida”, sem nenhuma evidência de atitudes amorosas e éticas. A perversidade é o meio do aparente sucesso. Aliás, um tema bem atual que nunca saiu da tessitura da camada social atual.
Flaubert, ainda com respeito aos seus personagens, denuncia os estilos de vida estéril, amorfa, depressiva e infeliz. Mostra em seu personagem Emma Bovary, a criação de “um mito moderno: a mulher complexa e insatisfeita com o casamento que, sonhadora, busca na infidelidade e nas compras um substituto para a felicidade”.
Lydia Davis, em seu prefácio ao romance (tradução de Mário Laranjeira, Editora Penguim&Cia.das Letras) escreve:”O autor não condena seu comportamento (Emma), pelo contrário, chega a ter alguma simpatia por ela; também não critica nenhum outro personagem. A história é intransigente: a heroína comete adultério e depois se suicida; seu bom marido também morre; seu filho inocente é fadado a ter uma vida dura; o prestamista malvado que foi o instrumento da perdição de Emma prospera; Homais, o “amigo” conivente, hipócrita e desleal, é recompensado com a cobiçada medalha”.
Charles Baudelaire em suas apreciações sobre Flaubert e sua “Madame Bovary”, traz questões interessantes e atuais para reflexões contemporâneas. Escreve :”Qual é o terreno da tolice, o mais estúpido dos meios, o mais produtivo em coisas absurdas, o mais abundante em imbecis intolerantes? A província. Quais são, ali, os atores insuportáveis? As pessoas simples que se afainam em pequenos trabalhos cujo exercício lhes deforma as ideias. Qual o elemento mais usado, mais prostituído, o realismo mais cansativo? O adultério”. A dama que inspira o bovarismo tem na pena de Baudelaire traços do masculino e da virilidade. “A imaginação, faculdade suprema e tirânica, substituindo o coração, ou o que chamamos coração, de onde o raciocínio é normalmente excluído, e que predomina geralmente na mulher e no animal; energia súbita para a ação, rapidez de decisão, fusão mística do raciocínio e da paixão, que caracteriza os homens criados para agir; gosto imoderado pela sedução, pela dominação e mesmo por todos os meios vulgares de sedução, descendo até o charlatanismo de vestuário, dos perfumes e dos inguentos —o todo se resumindo a duas palavras: dandismo, amor exclusivo pela dominação”.
Será que hoje, passados dois séculos, estamos longe do “bovarismo”? O que é essa sociedade tida como consumista, tendo o poder material como princípio de desenvolvimento; o ter pelo ser; a satisfação imediata dos desejos sensoriais e carnais; o espectro depressivo como consequência de uma vida fútil, escassa de afetos, anoréxica, bulímica; relações de trocas perversas em torno do poder e dos seus benefícios; galgar um lugar ao sol mas sem nenhuma competência profissional e humanística?
No pensamento crítico de Vladimir Naborov, crítico de literatura, vamos ver em seu livro: “Lições de Literatura”, Editora Três Estrelas com que semelhanças ele nos fala da época do bovarismo: “O reinado de Luís Felipe, rei cidadão (le roi bourgeois), de 1830 a 1848, foi uma era placidamente sem brilho quando comparada com os fogos de artifício de Napoleão no início do século e nos próprios tempos variegados. Na década de 1840, “os anais da França eram tranquilos sob a fria administração de Guizot”. Mas “1847” se abriu com aspectos sombrios para o governo francês: irritação, carências, o desejo por um comando mais popular e talvez mais brilhante. A trapaça e o subterfúgio pareciam reinar nas altas esferas”.