Ouvindo uma composição musical —-“Tango( Versão em Português ) de Paula Morelenbaum e Ryuichi Skamoto (acesso fácil no Youtube), resolvi escrever alguma coisa hoje sobre essa parceria intrínseca – tango e paixão. Antes de prosseguir transcrevo sua bela letra:
“Como esse sol que vai/ Queimando sem descanso, grito/ Como o caminho do deserto/ Seco e frio, sinto./ Como essa forma apaixonada/ E quase louca, busco/ Esse momento decisivo sem barreiras / E me atormenta a sua ausência,/ O peso do vazio/ O mundo todo em minhas mãos/ Depois perdê-lo./ É como um tango bem bailado lá no céu/ Mas prá você isso apenas/ Outro amor fugaz.
Viagem irreal/ viver sem você/ Não sei porque/ Sofrendo ainda te quero/ E não encontro um meio/ De viver sem esperar.
Minha visão fica perdida/ No seu nome/ Sua figura é uma linha imaginária/ Uma recordação errada que me invade/ Meu corpo se abre com paixão/ De uma rosa ao sol.
O sonho se foi/ Postais de amor/ Não sei porque/ Sofrendo ainda te quero/ E não encontro um meio/ De viver sem esperar/ Nessa viagem que não tem fim/ Guardo as cores amadas sobre mim/ Sobre meu peito tanta dor/ Vou nesse rio todo meu, tão seu/ Com velas de ternura/ Onde sua presença foi/ Um frágil barco de papel.
Minha visão ficou perdida/ No seu nome/ Sua figura é uma linha imaginária/ Uma recordação errada que me invade/ Meu corpo se abre com paixão/ De uma rosa ao sol./ Lembranças que vem/ Bonitas pra mim/ Não sei porque/ Sofrendo ainda te quero/ E não encontro um meio/ De viver sem esperar/ Talvez um outro amanhecer”.
Há quem diga que, letra de música não é poesia. Não quero entrar nessa discussão, complexa e infinda. A mim nesse momento vejo que é difícil pensar na ausência da musicalidade da poesia e na ausência de poesia na letra de uma canção. Vinicius de Moraes é um belo exemplo!
Bom, mas pensemos nessa parceria do tango e a paixão: é claro que são quase que sinônimos, pois um tango é uma composição musical que contém em si mesma uma corporeidade e uma expressão dramática de sentimentos que oscilam e se deslizam entre o amor e o ódio, entre a dor psíquica e a beleza estética dos seus movimentos em direção a um estado de alma que nosso Manoel Bandeira chamava de “alumbramento”. Desde o tango de Gardel ao sofisticado tango de Astor Piazzolla, sua musicalidade, suas expressões de ritmo com síncopes, harmonias em aberto, cores musicais que vão da leveza de uma frase em “adágio” a uma turbulência pintada por desenhos melancólicos, ora suavemente belos, ora de uma tenacidade policromática e uma harmonia dissonante. Bailar um tango não é uma dança simples, é uma entrega passional que perpassa corpo e alma juntos e disjuntos num clima de paixão. Paixão que implica um amor idealizado, “uma visão fica perdida no seu nome/ sua figura imaginária/ meu corpo se abre com paixão de uma rosa ao sol”. “ Com essa forma apaixonada e quase louca busco, esse momento a sua ausência. O peso do vazio, o mundo todo em minhas mãos”, diz o poema da letra. Os movimentos expressivos de dominação e submissão; de presença intensa e repulsa; de entrelaçamentos de pernas procurando o infinito do amor; de paradas tais como um silêncio musical afastando o par e logo os unindo numa efusão de corpo a corpo, olhares profundos de penetração mútua, movimentos de uma nuance sexual e erótica mostrando que a paixão é uma estado de “dois em um”, de uma fusão profunda que “ minha visão fica perdida no seu nome, sua figura é uma linha imaginária, uma recordação errada que me invade, meu corpo se abre com paixão… O poema fala de que não consigo viver sem você e minha vida é sempre uma espera mesmo que a “viagem seja irreal”, mas vivida, alucinatoriamente como a “realização do elo perdido” que tanto se procura depois da primeira paixão — a perda da mãe ou da “função materna” e a eterna busca por alguém que substitua esse amor passional, único, incondicional e eterno.
A tragédia se anuncia quando na letra da canção vemos essa frase melancólica: ”é como um tango bem bailado lá no céu, mas pra você isso é apenas outro amor fugaz”.
A paixão é efêmera, transitória, passageira e fugaz, ainda que intensa e “eterna enquanto dura”, escreveu Vinicius.
Convido o leitor a ouvir esse tango! Ouvir, repetir a escuta, declamar a letra numa atitude poética, condição indispensável de sentir a experiência emocional da junção da poesia e sua musicalidade. Musicalidade que o piano de Sakamoto introduz e entrega à Paula Morelenbaum, na leveza de sua voz, para descrever a história da canção. O violoncello de Jacques Morelenbaum se introduz deslizando suas frases suaves e trágicas com entremeio da força gravíssima no registro inferior da voz do instrumento. A lírica da voz de Paula, os acordes do piano de Sakamoto e a melodia do Cello de Jacques compõem um trio para mostrar o “dueto da paixão de um tango” que nos lembra os movimentos dialéticos de vida e morte, integração e dissonância, agudos de gritos de pavor e alegria, assim como graves de dor e tristeza que o nosso ícone do tango contemporâneo, Astor Piazzolla sabia dedilhar em seu Bandoneón, um dos instrumentos mais complexos para se dominar.
“Lembranças que vem, bonitas pra mim não sei porque. Sofrendo ainda te quero e não encontro um meio de viver sem esperar. Talvez num outro amanhecer”, frase que me sugere, talvez numa outra paixão, pois o tango e amor passional são como “o rio de Heráclito”, não se repete, num caminho que nunca terá fim —- o caminho da busca pelo Elo Perdido!