Poder e Destruição

O ser humano sempre anunciou em sua interioridade as forças de vida e morte, de construção e destruição. O espectro vai da beleza criativa de uma sinfonia de Mahler, de um conto de Hoffmann, de um poema de Bandeira à violência de uma bomba atômica, a crueldade do fanatismo religioso transformado em práticas terroristas a uma bala perdida no meio da rua que atinge o cérebro de uma adolescente.

Uma forma de destrutividade muito comum é o uso arrogante das pessoas que estão no poder. Não todas são é claro, mas algumas delas realizam, quando grandiosas, fantasias de onipotência e de uma insensibilidade surreal. Assaltos engenhosos, enriquecimento ilícito através da corrupção, desvios de verbas públicas para benefício próprio e estratagemas de se manterem no poder indefinidamente.
Lendo um belo pequeno ensaio de J.L.Borges –“A muralha e os livros”, escrito em 1950, nosso cânone da literatura universal escreve: “Lí, dias atrás, que o homem que ordenou a construção da quase infinita muralha chinesa foi aquele primeiro Imperador, Che Huang-ti, que também mandou queimar todos os livros anteriores a ele.” Esse imperador teve Seis Reinos a seu poder e desfez o sistema feudal. Muralhas eram e são defesas, mas que motivo levava aquele homem a queimar a História passada, a cultura? Porque queimando os livros se queima a memória do passado e do futuro. Os regimes de poder, sejam eles ditaduras militares ou civis, são destrutivos na base – “queimam a Educação”. “Três mil anos de cronologia tinham os chineses( e durante esses anos, o Imperador Amarelo, Chuang Tzu, Confúcio, Lao Tsé) quando Che Huang-ti ordenou que a história começasse com ele”, afirma Borges em seu ensaio.
A História começa que com ele é uma insensatez arrogante tentando realizar uma fantasia, ou fantasias de onipotência, onisciência e onipresença. Prossegue Borges: “Talvez a muralha fosse uma metáfora, talvez Che Huang-ti tenha condenado os que adoravam o passado a uma obra tão vasta quanto o passado, tão tosca e tão inútil quanto ele… Talvez Che Huang-ti tenha amuralhado o império porque sabia que este era perecível, e destruído os livros por entender que eram livros sagrados, ou seja, livros que ensinam o que ensina o universo inteiro ou a consciência de cada homem…A muralha tenaz que neste momento, e em todos, projeta seu sistema de sombras sobre as terras que não verei é a sombra de um César que ordenou a mais reverente das nações queimasse seu passado; é verossímil que a ideia nos toque por si mesma, além das conjecturas que permite. (Sua virtude pode estar na oposição entre construir e destruir, em enorme escala)”.
Podemos navegar sobre a metáfora da “queima dos livros” como o fato de qualquer governo não dedicar e não aplicar os recursos dos impostos públicos à Educação. Governo sem Educação é uma tentativa milenar de manter a população entretida no consumir, no “crescer materialmente” favorecendo uma cultura desprovida de qualquer sentido político-social. A História nos mostra que queimar livros e erguer muralhas é tarefa comum dos príncipes para que o Império continue numa casta de Imperadores familiares. Hoje se estuda muito a questão da transgeracionalidade, uma maneira de formar uma cultura familiar, coisa que não é novidade.
Em 2006, o escritor colombiano Héctor abad, escreveu um profundo livro chamado: “A ausência que seremos”. Estranho título com possibilidade de várias interpretações. Uma delas seria pensar de que ausência falam o livro de Héctor e o poema “Epitáfio” de Borges? Que ausência podemos pensar nos dias de hoje? A ausência de pessoas (pais, professores, políticos, governantes, etc.) como referência aos processos de Identificação em busca de uma Identidade. É um fato palpável a desagregação das funções paternas e maternas, a crise “esquizomorfa das famílias”, a perversidade da falta de ética nos poderes governamentais. Que ausência já temos? Termino com o poema de Borges:

“Epitáfio”
Já somos a ausência que seremos./ O pó elementar que nos ignora,/ que foi rubro Adão, e que é agora/ todos os homens, e que não veremos.
Já somos sobre a campa as duas datas/ do início e do fim. O ataúde,/ a obscena corrupção que nos desnude, / o pranto, e da morte suas bravatas.
Não sou o insensato que se aferra/ ao som encantatório do seu nome./ Penso com esperança em certo homem
que não há de saber o que eu fui na terra./ Sob o cruel azul do firmamento/ consolo encontro neste pensamento”.

 

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