É difícil pensar o tempo, é doloroso sentir o tempo. O tempo que passa, que ultrapassa, que se amontoa em dias, meses, anos a fio, tecendo a vida que sempre se angustia por conter um ponto final. A vida tem ponto final, tem fim, tempo estipulado para terminar, tem futuro que se fraturará na despedida do além mar.
Manuel Bandeira, nosso simples e singelo, mas não menos importante poeta, um dia escreveu em seu livro “Andorinha, andorinha”, organizado por Carlos Drummond de Andrade: ”Uma das invenções mais surpreendentes de Rosa(Guimarães Rosa) foi aquilo de falar “nesta outra vida de aquém-túmulo”. O que eu não dava para ter fabricado isso! Agora é tarde, está achado, e o único jeito é plagiar”.
Nascemos quando nascemos, ou nascemos antes de nascer, com a civilização e hoje com a transgeracionalidade? Nascemos quando somos paridos, ou já lá dentro da grande ilusão paradisíaca do útero já estamos vivos, atentos com nossos órgãos visuais, olfativos e acústicos? Às vezes, encontramos pessoas que já têm mais de duzentos anos, ainda que na realidade tenham quarenta.
A idade psíquica é atemporal, como nos sonhos! Outro dia, uma pessoa conversando comigo disse que queria parar o tempo, ao que questionei: se você quer parar o tempo ou no tempo, que idade você prefere estar parado? Ela sorriu, parou, pensou e disse: quarenta anos! Talvez tivesse razões agradáveis e prazerosas relacionadas a essa idade.
O tempo não para, e com ele, vamos desfilando entre veredas várias, cheias de alegrias, de espanto, perplexidade e de tristezas. A morte sim, a morte não deixa mais sentir, a morte estabelece a parada do trem na última estação, sem volta. Mas, também há morte na vida, e existem aqueles que param o trem mesmo quando vivos. Estacionam sua caminhada por causa de desapontamentos, decepções, carregadas de ódio que impede prosseguir.
Estamos assim no espaço da depressão – a brutal negação da vida e do tempo. No deprimido só o passado lamentoso importa, pois o presente é atrapalhado pelas memórias acusatórias daquilo que se critica ter feito de errado. Mas, o deprimido também acusa que seu ser é finito e disso tem muito ódio. Ódio à realidade, ódio à realidade que todas as pessoas nascem mortais, finitas e com limitações.
Quem sabe que, a maior depressão, a maior tristeza, é a consciência da relatividade do ser. O ser grandioso, onipotente, onipresente e onisciente jamais seria um depressivo, pelo menos na fantasia. Caso isso fosse alcançado, e às vezes se alcança, a pessoa entraria num universo maníaco, com brilhante delírio de grandeza.
A partir de certa idade o homem não pode ser mais cartesiano, há que ser relativo pois as “falsas certezas oniscientes” se desmoronam com o passar do tempo. Viver a relatividade, os paradoxos, os pares de opostos, aquilo que para alguém obsessivo seria um absurdo, pois o mundo é lógico, racional, dois e dois são sempre quatro.
Certa ocasião, Gustave Flaubert tergiversando sobre sua própria existência escreveu: “E no tempo que eu era jovem e puro, quando acreditava em Deus, na felicidade, no futuro, na pátria; no tempo em que meu coração palpitava quando ouvia a palavra: liberdade!..então —oh! Que Deus seja maldito por suas criaturas! —então Satã me apareceu e disse: Vem, vem a mim; tens ambição no coração e poesia na alma, vem, que te mostrarei meu mundo, o reino que é meu.”(Cf. Souvenir). É claro que há de se viver a depressão, mas temos que tirar proveito dela caso contrário gastamos o resto de nossas vidas em lamentações.
Glauber Rocha falava em “Deus e o Diabo na Terra do Sol”; Guimarães Rosa tinha no diabo a metáfora da loucura de todos nós, Gustave Flaubert soube aproveitar o convite do Demo; William Blake dizia que é dos contrários que se faz o progresso e Milton, o poeta maior, escreveu em seu “Aeropagitica”: “… foi da casca de uma maçã mordida que o conhecimento do bem e do mal, como dois gêmeos tomando caminhos distintos, saltou para o mundo… Sendo esta a condição do homem, que sabedoria pode haver a escolher, que moderação a exercer, sem o conhecimento do mal Aquele capaz de apreender e considerar a corrupção com todas suas iscas e aparentes prazeres, e assim mesmo se abster e ainda distinguir, e ainda preferir o que é verdadeiramente melhor, é o verdadeiro Cristão.”
Somos limitados, somos finitos, somos “anjos caídos”, como tal, necessitamos rever nosso tamanho, nossos recursos próprios. Termino com versos de Bandeira em homenagem a Guimarães Rosa:
“Depois de morto,
Primeiro quererei beijar meus pais, meus irmãos, meus avós, meus tios, meus primos.
Depois irei abraçar longamente uns amigos —-Vasconcelos, Ovalle, Mário…
Gostaria ainda de me avistar com o santo Francisco de Assis.
Mas quem sou eu? Não mereço.
E então me abismarei na contemplação de Deus e sua glória.
Esquecido para sempre de todas as delícias, dores, perplexidades
Desta outra vida de aquém-túmulo.
Que tal, Rosa? Que tal, leitores?”