No calendário romano o ano muda no primeiro de janeiro. Marca a passagem do tempo. O tempo que se move indiferente à vontade de todos; o tempo que traz sempre uma reflexão sobre a vida, sobre a finitude da existência e como estamos aproveitando ou desperdiçando nossos dias.
O tempo do passado é presentificado na memória, e só existe no presente, pois o passado passou e jamais voltará. O tempo do primeiro grito de terror e a alegria quando se nasce; o tempo do anseio de ser nutrido: de alimento e de afeto; o tempo da primeira palavra, da capacidade sempre complicada, de distinguir o eu do outro; o tempo do comer com sua própria mão, o tempo do começo da independência. A memória traz a saudade, e só se tem saudade quando a experiência vivida com as coisas e pessoas queridas, são experiência de amorosidade. Quem vive mergulhado no ódio, no ressentimento e na queixa, não pode ter a lembrança da presença na ausência: a saudade.
O tempo da primeira professora, o tempo do primeiro olhar e do primeiro namoro. O tempo da dor da perda da namorada, tempo do choro, do desalento e do desamor. O tempo da escola, da faculdade, o tempo da entrada no mercado profissional. O tempo sofrido, da perda de um pai, de uma mãe ou de um irmão. O tempo corroído pelas queixas de experiências não vividas, de arrependimentos por tê-las deixado para depois. É difícil viver integralmente o tempo presente. O presente é o único tempo que temos, segundo o fantástico escritor J.L.Borges. Verdade, só temos o presente, tanto no passado presentificado como no futuro imaginado, tudo é no presente. Viver o presente é saber da nossa finitude, da nossa existência finita. Viver o presente é viver vinte e quatro horas por dia; não sabemos se acordaremos no outro dia! O presente é alegre, prazeroso e doloroso, mas só se aprende na vida se pudermos usufruir daquilo que temos.
O presente é hoje; é acordar, sair da preguiça depressiva, usar nossa agressividade útil para expandirmos a cada dia a nossa experiência. O presente é agora, pois não sabemos nada do tempo futuro, e o futuro do tempo é daqui há pouco mas nada dele podemos conhecer.
O futuro é incognoscível, é o desconhecido, aquilo que dói, ainda que não tenhamos consciência dessa dor. E é por que dói, que temos o hábito de preencher com fantasias e sonhos, para nos distrair de sofrer com nossa limitação psíquica. Não saber é uma experiência de impotência que raramente é tolerada. O futuro é assim, não se sabe, não há certeza de nada. J.Keats, poeta inglês, escrevendo sobre a genialidade de W. Shakespeare disse que o “homem de êxito” é o homem que pode tolerar a dúvida, a incerteza e o mistério sem necessariamente querer chegar a fato ou razão. O futuro só se sabe nas fantasias conscientes do presente; nos sonhos, projetos e expectativas. O futuro desafia a limitação da inteligência humana! Só nos restam, conjecturas, dúvidas, incertezas e esperança de realizações.
Celebremos o tempo do amor, das conquistas realizadas, do encontro desacreditado, de amar o amante que estava na fantasia, de ver nascer no filho a continuidade da vida, a única experiência que se pode dizer “infinita”. É nos filhos que sabemos que viveremos para sempre! Celebremos a passagem do ano, passagem metafórica, pois toda hora é a passagem do tempo. Guimarães Rosa, nas palavras de Riobaldo, no Grande Sertão, dizia que não era morrer que tinha medo, o maior medo é de nascer. Por isso que nosso destino é o presente das “travessias”. É na travessia que se vive, e travessia é consciência do tempo presente, é ter a capacidade de aprender no tempo vivido.
Lendo o livro de João Cabral de Melo Neto – “A Educação Pela Pedra” (1962-1965) dou de cara com um poema: “Habitar o Tempo”, e o descrevo aqui pensando na passagem do tempo, poema dedicado a F. A. Bandeira de Melo:
“Para não matar seu tempo, imaginou:/ vivê-lo enquanto ele ocorre, ao vivo;/ no instante finíssimo em que ocorre,/ em ponta de agulha e porém acessível;/ viver seu tempo: para o que ir viver/ num deserto literal ou de alpendres;/ em ermos, que não distraiam de viver/ a agulha de um só instante, plenamente./ Plenamente: vivendo-o de dentro dele;/ habitá-lo, na agulha de cada instante,/ em cada agulha instante: e habitar nele/ tudo o que habitar cede ao habitante.
E de volta de ir habitar seu tempo:/ ele corre vazio, o tal tempo ao vivo;/ e, como além de vazio, transparente,/ o instante a habitar passa invisível./ Portanto: para não matá-lo, matá-lo;/ matar o tempo, enchendo-o de coisas;/ em vez de deserto, ir viver nas ruas/ onde o enchem e o matam as pessoas;/ pois, como o tempo ocorre transparente/ e só ganha corpo e cor com seu miolo(o que não passou do que lhe passou),/ para habitá-lo: só no passado, morto.”