“Enquanto a pintura na obra de Proust, em si mesma considerada, tem sido objeto de vastíssima bibliografia, seja no que respeita às obras de arte referidas no texto, seja nas considerações gerais a respeito da estética pictórica, seja ainda a propósito do pintor Elstir, personagem do romance (um compósito de Whistler, de Helleu, de Degas e de Monet), a verdade que é a mesma atenção não tem sido dada à faceta de Marcel Proust enquanto ele próprio pintor, mais precisamente retratista”.(Yann le Pichon, in Le musé retourvé de Marcel Proust, Ed. Stock, Paris, 1990)
“Interessante notar que Proust escolhe o processo criativo da pintura para explicar o fenômeno que, para ele, justifica a literatura, ou toda a forma de representação artística” (Aguinaldo José Gonçalves, in “Museu Movente – o signo da arte em Marcel Proust, Editora UNESP.)
Minha intenção nesse breve artigo é convidar o leitor, particularmente o leitor proustiano, a pensar em termo pictórico, algumas descrições e narrativas do autor da “Recherche”, descrições e narrativas que mostram a capacidade de escrever literatura como se pintasse uma tela, um quadro, um instante do real do mundo, imperceptível à maioria das pessoas. Proust era um verdadeiro “voyeur”, espionava tudo, tudo visto e tudo imaginado, através de sua “memória involuntária”.
Suas descrições, as mais das vezes longas, às vezes enfadonha para alguns leitores, deixam brechas para se observar os detalhes, os fragmentos, os instantes mesmo de um fotógrafo, como quer Walter Benjamin em seu conceito de “inconsciente óptico”. Ainda que a leitura do “Em Busca do Tempo Perdido” (À la Recherche du temps perdu) seja uma obra da vida toda, é preciso ao lê-la, está sempre relendo, pois cada frase, cada pincelada, ora é uma visão real do externo, ora é a visão misturada com a memória do autor. Alberto Xavier, nascido em Lisboa em 1942, no seu livro: “ A Arte do Retrato em Marcel Proust – Antologia, Editora GryPhus, logo no início escreve: “…enquanto Proust retratista procede (como é próprio da sua escrita) de um modo fragmentário, por esboços, aditamentos, justaposições, retoques e aproximações sucessivas, disperso ao longo da obra, distante em si, “intermitentes”, interpolados, de modo que o retrato chega ao leitor como que indeciso, trêmulo, bruxulante, fugidio, inacabado, “sfumato”.
No volume quinto, da tradução brasileira do “Em busca do tempo perdido”, tradução feita por Manuel Bandeira e Lourdes Sousa de Alencar, logo no início — “Vida comum com Albertine”, Proust revela seu estilo pictório em vários momentos. Por exemplo, na página 85 escreve o nosso autor: “ Passei serões encantadores conversando, brincando com Albertine, mas nunca tão agradável como quando a via dormir. Ela podia ter, tagarelando, jogando, aquela naturalidade que nenhuma atriz poderia imitar, era uma naturalidade em segundo grau a que me oferecia o seu sono.
A cabeleira, descendo ao longo do rosto corado, estava pousada a seu lado no leito e às vezes uma mecha isolada e reta dava o mesmo efeito de perspectivas que aquelas árvores lunares delgadas e pálidas que se veem muito eretas no fundo dos quadros rafaelescos de Elstir. (Elstir é um personagem imaginário no romance, um pintor). Se os lábios de Albertine estavam fechados, em compensação, da posição em que me colocara, suas pálpebras pareciam tão pouco unidas que eu quase não saberia dizer ela estava mesmo dormindo.
Em todo caso, essas pálpebras abaixadas punham-lhe no rosto aquela continuidade perfeita que os olhos não interrompem. Pessoas há cuja face adquire uma beleza e uma majestade insólitas quando não se lhes vê o olhar. Eu media com a vista Albertine estendida a meus pés… Levava a mãos aos cabelos, e, não tendo feito como queria, tornava a tocá-los como movimentos tão seguidos, tão voluntários, que eu ficava convencido de que ela iria acordar… Eu, que conhecia várias Albertines numa só, parecia-me ver muitas outras mais deitadas a meu lado… Mas esse prazer de vê-la dormir, tão bom quanto o de senti-la viver, outro lhe punha fim: o de vê-la acordar”.
Estamos lendo e vendo a descrição de um “quadro” onde as palavras se escondem atrás do físico, do concreto, do visual, do retrato. Proust desenha, desenha detalhes, olha por vários vértice o seu “modêlo-Albertine”, e nos oferece numa linguagem lírica e poética uma pintura impressionista, um retrato do real justaposto aos seus sentimentos afetivos e também inconscientes.
Aguinaldo José Gonçalves, poeta, ensaísta e professor de Teoria Literária na UNESP, em seu livro —- “Museu Movente- o signo da arte em Marcel Proust”, Ed. UNESP, comenta a respeito do estilo de Proust: “Trata-se do entrecruzar do discurso do sonho (silencioso e plástico de Albertine) e do discurso poético construído pela gradação de metáforas, por meio das quais vão emergindo os sentidos inaudíveis, que só um estilo modulado poderia expressar, e cita nosso autor:”Às vezes, com efeito, quando me levantava para ir buscar um livro ao gabinete de meu pai, minha amiga, que me pedira licença para se deitar na minha ausência, estava fatigada pela grande excursão da manhã e da tarde ao ar livre que, mesmo se eu demorasse apenas um instante fora do quarto, ao voltar encontrava Albertine adormecida e não a despertava”.
Toda a obra “A La Recheche du temps perdu” mostra a genialidade de um escritor que revela a intimidade da Literatura e suas relações com outras artes, principalmente a Pintura. Observando pelo vértice plástico, vemos ao longo de sua obra, a capacidade de compor através das palavras e da pintura escrita, os traços e caracteres dos seus personagens e de si próprio.
A obra de Proust é algo autobiográfico tanto quanto a “Interpretação dos Sonhos” de S. Freud. Numa entrevista com Marcel Proust, traduzida no Apêndice de “No caminho de Swann”, tradução de Mário Quintana diz o autor: “Meu livro será talvez como um ensaio de uma sequência de “Romances de Inconsciente”. A linguagem usada por Freud e Proust tem um predomínio de Metáforas e Linguagem Plástica.