A Arte mostra a interioridade do Artista assim como sua capacidade estético-artística-filosófica de ver o mundo. O recente filme de Almodóvar consegue levar o espectador a um estado de alumbramento. As performances de todos os atores, a leveza bela e dolorosa da trilha sonora, as “pinturas” em estilo cinematográfico e os temas que emergem do enredo, colocam questões humanísticas de cunho artístico e humanístico.
Vários autores, entre eles cito Thomas Mann, Dostoiévski e Carlos Drummond, são unanimes em afirmar que a criatividade tem sua matéria prima na experiência dolorosa. Almodóvar mostra um personagem que corroído por dores existenciais, mergulha num estado depressivo, numa desesperança ante sua arte maior, filmar. Isola-se em lembranças, crises de angústia, rememorações “proustianas”, obstruído em sua capacidade criativa. Nada resta senão o desânimo, a recusa à sua própria realidade de compositor, o vazio, o nada. Esse vazio que de repente reflete a falta de amor, a dor psíquica e o prenuncio de uma morte artística. A heroína toma a cena de uma alternativa destrutiva; sua dor é acompanhada em solos de clarinete, escolhendo seu registro grave e algumas notas agudas que poetisam sua agonia. Não há mais nada a fazer senão viver entre quatro paredes mostrando uma existência criativa que se transformou em memórias, ressentimentos e pesares.
De repente, a monstruosidade artística do Diretor toma um rumo inesperado. O encontro com sua velha amiga; a apresentação de um monólogo por um amigo reconquistado; o aparecimento de um parceiro de amor que assiste à peça teatral; a visita desse parceiro numa cena belíssima onde a homossexualidade não é mais escolha e sim a afetuosidade respeitosa pela experiência amorosa; a iminência de um diagnóstico abortado de câncer, tudo isso se transforma naquilo que nomeia o filme –Dor e Glória! Eu daria um subtítulo: sofrimento e criatividade.
Thomas Mann, em seu belo ensaio: “Freud e o futuro”, lembra a frase de Victor Hugo: ”L’humanité s’affirme par l’infirmité” (A humanidade se afirma pela enfermidade). Almodóvar nos presenteia com essa questão, provavelmente vivida por ele próprio. A “dor” e a “glória”, cinema, literatura e pintura juntos, mostra que a elaboração dos lutos, a vitória do amor sobre o ódio e o ressentimento, inexoravelmente levam às transformações substitutivas, simbólicas em direção ao resgate da criatividade. O filme, ou melhor, a mensagem de Almodóvar, remete a todos os seres humanos transformarem a “loucura de todos nós” em arte, cinema, literatura, poesia, música, política e ciência. Bela obra que elabora a destrutividade da “pulsão de morte” em recursos criativos na direção da vitalização do Ser.