Psicanálise da Vida Cotidiana: Brasília: Book Rosa! – 15/07/15

 

Linda, esplendorosamente linda, a quadratura do círculo, as formas de uma harmonia dissonante, os concretos frios e úmidos, os arcos, os arcos revelando soltura, as mãos voltadas ao Céu, de uma Catedral que ora o salmo do futuro, as formas horizontais de suas quadras residenciais, a sucessão de Ministérios levando a vista, inevitavelmente aos Palácios, ao Congresso Nacional, descendo a rampa mostrando que a exuberância do Poder, a Presidência da República, imponente na praça, ainda que tromba num “mastro” que destoa das formas surrealistas da arquitetura do querido Niemeyer. Realmente a linda jovem, hoje ainda, engole sem digerir, as estapafúrdias ideias arquitetônicas que fraturam o corpo belo da menina linda, nascida do sonho de Dom Bosco, criada pela astúcia e sabedora de Juscelino e desenhada com carinho, com delicadeza e coragem pelos artistas em torno do grande Oscar.

O cotidiano brasiliense é marcado pela chegada de funcionários, tanto das cidades satélites quanto do próprio Plano Piloto, a se acomodarem em seus cargos, uns consequência de concursos públicos, outros resultado de conluios entre políticos, partidos e governo, beneficiando não a questão profissional mas aos pedidos de interesses eleitoreiros, as mais das vezes comprometendo a eficiência funcional. De terça a quinta-feira, a linda modelo desenhada pelos oscares e lúcios costas recebe no aeroporto, diga-se de passagem, aeroporto hoje de padrão de primeiro mundo, os deputados, os senadores, os empresários, os técnicos e os lobistas. Estamos no cotidiano da cidade-poder, das veias e artérias que distribuem o sangue da luta pelo poder, pela astúcia de pessoas especializadas a convencer nossos (?) deputados, senadores, ministros e assessores parlamentares a aprovarem projetos. Frise-se, projetos nem sempre em função de compromisso social e público mas com a finalidade de aumentar a conta bancária de alguns políticos, prefeitos, governadores, ministros, empresários e funcionários superespecializados. Que bom seria se a nossa garota surreal pudesse proporcionar somente suas funções de modelo, de manequim e melhoria da qualidade de vida! Todos sabemos que no intermezzo desses conluios, do esquema de corrupção, de desvios de verbas públicas, entram em cena, na passarela escondida, algumas brasílias “book rosa”, oferecendo seus corpos, acompanhando pessoas ávidas, carentes, vazias, preenchendo satisfações eróticas e sexuais, desfilando nos porões dos hotéis de luxo, no garden-party das mansões dos Lagos, corrompendo a função primordial da Política: aprovar projetos em benefícios da comunidade, da melhoria da qualidade de vida, na habitação, saúde, educação e melhor distribuição de renda. Não, a esbelta manequim – Brasília —parece ter se transformado numa cidade que oferece o “prazer pelo prazer”, as facilitações ao poder e principalmente o aumento de patrimônio de algumas pessoas que veem no Poder a realização de suas fantasias para atender aos sofrimentos de inveja e voracidade, pra não falar do exercício da arrogância, na onipotência e da atitude megalomaníaca de plenitude.

É comum no dia a dia da cidade assistirmos atos perversos de automóveis de chapa preta e azul estacionarem em duplas filas, de preencher espaços determinados para idosos e cadeiristas, como se fosse uma cidade do interior (talvez seja) na qual o prefeito, o delegado, o doutor, o padre abusam do poder em plena via pública.

Nossa menina que nasceu em terras goianas é uma menina cheia de vontade, mimada, mal-acostumada e crente que, com seu “book rosa” ganha muito bem, desfila por entre os espaços oficiais, convencem através de lobistas a que se aprovem projetos familiares ou de empresas de “lava a jatos”, e depois se compromete na cadeia da corrupção, às vezes das drogas, até se casa com alguns personagens do grande Cerrado.

O que faz uma função profissional ser desviada do ideal? O mesmo que uma Universidade particular que paga e explora seus docentes arrancando milhões do bolso dos seus alunos, descomprometida com sua função de educar, e sim, de se transformar numa empresa para lucros abusivos sem pensar na melhoria da Educação!

Nossa jovem, linda, moderna, mais do que moderna, Brasília, com seu céu azul sem nuvens e com sua noite colorida por todas as estrelas e planetas, além de mostrar, durante o dia, a sensação oceânica de um espaço infinito e um horizonte parecidos com aquele que o mar mostra, lá bem longe.

É essa a nossa cidade, contraste de um sonho divino com a realidade cruel do exercício de um poder perverso. De quatrocentos mil habitantes, plano populacional dos seus idealizadores caímos nos três milhões de pessoas, concentradas hoje em cidade satélites, produto factual de currais eleitorais após ter sido premiada por governadores, senadores, deputados federais e deputados distritais. Ah que saudade da época de uma cidade administrativa, governada para o bem comum e não para criar uma bela aparência de modernidade. Tecnologicamente podemos até aplaudir, mas humanamente estamos no meio do país, dentro de uma grande fazenda, revivendo a “casa grande e a senzala”.

Para terminar por hoje, volto ao meu querido Mário de Andrade que já falava de crise em 1929 numa carta a Manuel Bandeira:

“Comigo sucedeu uma coisa engraçada, faz uns dois meses. Passei a limpo os contos de Belazarte, levei para o impressor, combinei preço, tudo, dei ordem para imprimir. Cheguei em casa, me bateu uma descoragem para publicar o livro agora! É estúpido a gente estar imaginando em literatura numa época destas em que nem se sabe o Brasil em que irá dar. Crise, inda por cima, e a gente criando “luxo”. Achei que era besteira publicar e no dia seguinte retirei os originais da tipografia. Tem momentos porém que me volta a vontade de publicar já a coisa”.

 

Carlos de Almeida Vieira – Médico, Psiquiatra, Psicanalista da Sociedade de Psicanálise de Brasília SPBsb, Membro da Federação Brasileira de Psicanálise –  FEBRAPSI e da International Psychoanalytical Association IPA/London

Coluna publicada todas as quartas-feiras no “Blog do Moreno” de O Globo

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