Psicanálise da Vida Cotidiana: Carlos Drummond, mais que mineiro! – Carlos de Almeida Vieira – 29/04/2015

Escrever sobre Drummond não é tarefa fácil. Circunspecto, calado, mineiro de raiz, às vezes cabisbaixo, outra hora, aparecendo numa foto como alguém de uma singeleza, de uma generosidade ímpar. Cabelos escassos, olhar que penetra nossos olhos, candura que nos faz sentir o amor, seriedade de um homem de princípios, mesmo gauche, mas de uma integridade forte e serena. Há quem realce o jeito depressivo de ser do nosso poeta, o que penso mais sendo um homem sofrido, reflexivo, meditativo e consciente desse lado obscuro de todos nós. Uma pessoa é claro, excepcional, mas trazendo dentro de si uma curiosidade permanente diante do drama humano, do “sentimento do mundo”, da angústia de viver o tempo, do espanto do “E agora, José”, trazendo sua preocupação com a realidade factual, os fatos políticos sociais, aspectos que sua poesia nunca deixou de lado. O poeta, mineiro também, Affonso Romano de Sant’Anna escreveu, em seu livro:”Drummond, o Gauche no Tempo”: “…Mas Carlos Drummond de Andrade, timidíssimo, é ao mesmo tempo inteligentíssimo e sensibilíssimo(…) E desse combate toda a poesia dele é feita”. Carlos sabia bem o que Machado de Assis, em seu belo conto do “Espelho”, chamou de: “uma nova teoria da alma”. Carlos e Machado tinham consciência da existência das duas almas no ser humano: a alma interior e a alma exterior. Tanto em sua obra poética com na beleza de suas prosas, Drummond sabia observar a realidade psíquica tanto quanto os fatos das ruas, da política, do desaparecimento das pessoas nas grandes metrópoles, da angústia do estar-no-mundo, às vezes nauseante, outras vezes radiante. O poeta não é poeta sem a sua responsabilidade e sensibilidade sociais, sem pesquisar, intuir e escrever, ainda que de maneira metafórica, a crueza e a delicadeza da vida, os estados de ânimo frente a conflitos internos ( e ele os sabia muito bem) e externos, tendo tido uma vida pública e um comprometimento político. Augusto Massi, no no. 8/9 da “Teresa, revista de literatura brasileira, escreve que o Gauche conhecia as leituras da obra de Freud, e a seu pedido, se publicou no terceiro número de A Revista, da qual era um dos diretores, uma tradução da célebre conferência de Freud sobre a descoberta do Inconsciente.
Mas hoje estou escrevendo para relatar o meu “alumbramento”, como dizia Bandeira, com um aspecto típico da personalidade drummoniana: a sua relação amorosa intensa tanto com sua mãe Julieta Augusta como com sua filha, Maria Julieta.
Lendo e relendo “Os Sapatos de Orfeu”, do biógrafo José Maria Cançado, uma biografia muito interessante e profunda do nosso poeta maior, detive-me num capítulo chamado de “O Inferno e o Biográfico”. Lá encontro uma bela anotação no diário de Drummond, de 20 de maio de 1954, seis anos após a morte de sua mãe Julieta, em Itabira. A nota revela um Drummond poético, lírico e amoroso com sempre com sua Julieta(?). Gravando em sua pena a presença interna daquela mulher amada, Drummond nos brinda com uma bela descrição do que os psicanalistas definem como “internalização do objeto amoroso” dentro de uma personalidade! A mãe ainda que morta no espaço externo, permanece viva, afetiva, aquela mulher que seu filho Carlos escreve:”Por fim, és tu mesma que te retiras, enquanto um ramo de tua vida está aqui, nesta cidade que nunca viste, e pouco são os que te conhecem e sabem sequer que existisse. Em outro momento de sua escrita aparece uma apreensão fantástica do sentimento amoroso e de separação que sempre levou consigo: Nesse espaço, uma criança vem ao mundo, torna-se órfã e se faz moça, casa-se, os filhos vêm chegando, a maior parte deles morre cedo, outros crescem para ligar suas vidas com a tua e depois separá-las, cada um no seu ramo”.
Drummond tinha uma noção exata da importância de uma mãe na vida de uma pessoa. Digo mãe, usando uma metáfora maior: o amor incondicional, o amor que os filhos sabem que têm mesmos separados, longe. A maior metáfora do amor maternal é um sentimento necessário, durante toda nossa vida, que temos alguém dentro e fora de nós, sempre que não estamos absolutamente sós, e que aja o que houver, temos alguém ao nosso alcance. Ainda que tenha um sentido fantástico também, é preciso de acreditemos nessa presença antecipada do Outro em nossa vida. Penso que isso é a raiz e matéria prima da Esperança e da Fé.
Carlos termina sua carta com uma expressão poética e afetuosa, dizendo: “Um ramo a lembrar o curso humilde de tua vida caseira, à sombra do homem forte que também já se foi antes de ti, os dois integrados no mesmo pó que me espera…Abençoa-me e acaricia-me, porque sou sempre criança a teus olhos, enquanto o velho em mim se confirma. E se dentro de mim existes, em ti também vou existindo, e nossas vidas se confundem… Lindo! Lindo! caro leitor.
Drummond após essa anotação, foi buscar os restos mortais de sua querida mãe em Itabra e os trouxe para Belo Horizonte, inclusive dizendo que não voltaria mais, pois “ o que é meu estou levando”, disse a alguém que queria saber da sua volta. Carlos levou durante toda a sua vida essa mãe dentro de si, essa raiz criativa que o acompanhou sempre e fez dele uma pessoa que sempre se amou, ainda que meio triste e um tanto desiludido com “o sentimento sobre o mundo”. Imagine caro leitor, ainda em 1º. De julho de 1925, quando “A Revista” chegava às bancas encontramos uma alusão dele à situação política do Brasil, que curiosamente é mais do que atual após 90 anos, leia-se:” Nascidos na República, assistimos ao espetáculo cotidiano e pungente das desordens intestinas, ao longo das quais se desenha, nítida e perturbadora, em nosso horizonte social, uma tremenda crise de autoridade. No Brasil, ninguém quer obedecer…Ao Brasil desorientado e neurótico de até agora oponhamos o Brasil laborioso e prudente que a civilização está a exigir de nós… Resta-nos humanizar o Brasil”. O Poeta tinha Esperança e Fé!

 

Carlos de Almeida Vieira – Médico, Psiquiatra, Psicanalista da Sociedade de Psicanálise de Brasília SPBsb, Membro da Federação Brasileira de Psicanálise –  FEBRAPSI e da International Psychoanalytical Association IPA/London

Coluna publicada todas as quartas-feiras no “Blog do Rádio do Moreno” de O Globo

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