Psicanálise da vida cotidiana – Das amizades – 24/10/18

           

       

         “Em suma, isso que chamamos comumente amigo ou amizade não passam de relações familiares, travadas ao sabor da oportunidade e do interesse e por meio das quais nossas almas se entretêm. Na amizade a que me refiro (amizade com La Boétie) as almas se entrosam e se confundem em uma única alma, tão unidas uma à outra que não se distinguem, não se lhes percebendo sequer a linha de demarcação. Se insistirem para que eu diga porque o amava, sinto que o não saberia expressar senão respondendo: porque era ele; porque era eu.”

        Fragmento de M.E. de Montaigne, em seu livro I – Ensaios.

 

Montaigne viveu uma transição entre o medieval e o moderno, guerras, conflitos e uma vida de reflexão filosófica e literária. Nesse ensaio sobre a Amizade, me faz pensar sobre as relações humanas hoje em dia, nesse mundo pós-moderno, onde as pessoas parecem que olvidaram em cuidar das suas amizades.

Outro dia, um amigo meu disse que amigos, mais de cinco, é sinônimo de multidão, e multidão remete a conflitos grupais recheados de inveja, ciúme, rivalidade e competição. Um analisando meu, chamou minha atenção que estava “treinando” uma vida minimalista. Pois bem, amigos, amigos, realmente temos poucos, e poucas são as pessoas que mesmo na ausência, parecem que estávamos com elas ontem; esses são amigos.

Discordo um pouco de Montaigne quando fala em confusão de almas; é claro que leio no sentido metafórico, mas o que marca uma amizade é a capacidade de conviver, mesmo em momentos de conflitos, com as diferenças individuais de cada um. Somos dependentes e sozinhos na vida, mas o sabor e a alegria de um amigo são como a beleza de uma rosa que sempre se transforma em outra rosa, expirando odores de confidencialidade, privatividade e cumplicidade.

Amigo é alguém que suporta dentro da relação, amor e ódio, ciúme e inveja, dor e prazer. Carlos Drummond, em seu poema Convívio, de uma forma respeitosa e irônica, versava: “Mas, como estão longe, ao mesmo tempo que nossos atuais habitantes/ e nossos hóspedes e nossos tecidos e a circulação nossa!/ A mais tênue forma exterior nos atinge./ O próximo existe. O pássaro existe./ E eles também existem, mas que oblíquos” e mesmo  sorrindo, que disfarçados…”

Perder um amigo é coisa que merece luto; perder um conhecido (disfarçado de amigo) é sem importância. Amizade é coisa que enriquece a alma, que alimenta, que fica na ausência, que caminha junto nas decepções, que chora e sorrir ainda que as turbulências do viver promovam ondas perigosas.

Que bom que temos poucos amigos! São eles que dão espaço para termos vida própria; são eles que não nos afastam das verdades, são eles que compõem nosso mundo interno e externo. 

 

 

Carlos de Almeida Vieira – Médico psiquiatra, Psicanalista da SPBsb e da SBPSP (São Paulo), Membro da Federação Brasileira de Psicanálise –  FEBRAPSI e da International Psychoanalytical Association – IPA


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