“O poema é uma máscara que oculta o vazio, bela prova da supérflua grandeza de toda obra humana”. (Octavio Paz).
O poeta não morre! A voz de quem clama o indizível permanece eterna em sua obra e em seu canto. “A poesia é conhecimento, salvação, poder, abandono. Operação capaz de mudar o mundo, a atividade poética é revolucionária por natureza; exercício espiritual, é um método de libertação interior. A poesia revela este mundo; cria outro…. Experiência, sentimento, emoção, intuição, pensamento não dirigido. Filha do acaso”, descreve Octavio Paz em seu belo e profundo livro: “O Arco e a Flecha”.
Perdemos fisicamente Ferreira Gullar. Digo fisicamente, pois o que a cultura brasileira assimilou, incorporou, isto não se perderá jamais. Gullar, poeta, ensaísta, crítico de arte, biógrafo e Imortal da Academia Brasileira de Letras, deixa o exemplo de uma arte quase sempre ligada à realidade política e social do nosso país e do mundo. Aliás, a Arte só deve ser chamada de arte quando tem uma função social, caso contrário seria uma atividade onanista por excelência.
Hoje, segunda feira pela manhã, recebi de uma amiga um poema de Gullar, seu conterrâneo, que diz: “Não há vagas/ o preço do feijão/ não cabe no poema./ O preço de arroz/ não cabe no poema./ Não cabem no poema o gás/ a luz o telefone/ a sonegação do leite/ da carne, do açúcar, do pão./ O funcionário público não cabe no poema/ com seu salário de fome/ sua vida fechada em arquivos./ Como não cabe no poema o operário/ que esmerila seu dia de aço e carvão/ nas oficinas escuras./ –porque o poema, senhores,/ está fechado: não há vagas./ Só cabe no poema/ o homem sem estômago/ a mulher de nuvens/ a fruta sem preço./ O poema, senhores,/ não fede nem cheira”.
Seu primeiro livro foi “Um Pouco Acima do Chão”, foi publicado em 1949, quando residia em sua cidade natal, São Luís do Maranhão. Transfere-se anos depois para a cidade do Rio de Janeiro onde começa a colaborar em diversos jornais e revistas. Faz parte do movimento concretista, desiste de o seguir e faz parte do Movimento “Neoconcreto em 1959. Vive as agruras e perseguições da Ditadura de 1964, e exilado tempo depois, na década de 70, escreve seu famoso e imortal —“Poema Sujo”.
Gostaria de tecer alguns comentários a respeito da questão do paradoxo, da antítese, da inquietação na obra de Ferreira Gular, com as “intermitências do humano”. Essa angústia dos “pares de opostos”, da dialética constante do psiquismo, da contradição e de que não há possibilidade de crescimento e desenvolvimento senão na aceitação dos “contrários” como bem dizia William Blake no “Casamento do Céu com o Inferno”. Gullar nos mostra de uma maneira clara e inequívoca em seu poema “Traduzir-se”.
Uma parte de mim é todo mundo; outra parte é ninguém: fundo sem fundo.
Uma parte de mim é multidão: outra parte estranheza e solidão.
Uma parte de mim pesa, pondera; outra parte delira.
Uma parte de mim almoça e janta; outra parte se espanta.
Uma parte de mim é permanente; outra parte se sabe de repente.
Uma parte de mim é só vertigem; outra parte, linguagem.
Traduzir-se uma parte na outra parte — que é uma questão de vida ou morte — será arte?
Somos seres imperfeitos, somos pessoas dotadas de paradoxos, somos amor e ódio, criação e destruição, ternura e violência, claro e escuro, “Caim e Abel”. Somos feitos de natureza antagônica, mas somos um conjunto, somos tudo isso num mesmo ser. É na capacidade de hospedar em nós mesmos essa natureza tão contraditória que podemos, a cada dia, nos civilizar para nos tornamos mais humanos que animais.