Flaubert segundo Mario Vargas Llosa

Preocupado em aprofundar os estudos sobre Gustave Flaubert, tenho lido e relido um belo livro de Vargas Llosa —“A Orgia Perpétua – Flaubert e Madame Bovary”, edição da Alfaguara, de 2015.

Minha intenção era adentrar mais profundamente em alguns aspectos críticos da obra, mas ao longo da minha leitura fui me interessando como Vargas conhece e descreve aspectos da escrita de Flaubert – “o homem pena”, como se dizia o próprio escritor. Em uma de suas famosas e belas cartas, escrita em fevereiro de 1852 à Louise Colet, sua querida amante, Flaubert escreve:” Je suis um homme-plume. Je sens par elle, à cause d’elle, par rapport à elle et beaucoup plus avec elle. (Sou um homem-pena, sinto por meio dela, por causa dela, em relação a ela e muito mais com ela.)

Flaubert sempre foi rigoroso com seu trabalho, até mesmo obsessivo; a escrita e a procura certa da palavra sempre foi sua paixão maior. “um livro sempre foi para mim uma maneira especial de viver num ambiente qualquer. É isso que explica minhas hesitações, minhas angústias e minha lentidão.” A frase resume maravilhosamente bem o método flaubertiano: essa lenta, escrupulosa, sistemática, obsessiva, teimosa, documentada, fria e ardente construção de uma história, frisa Vargas.

Encontra-se no livro fatos importantes e que interessam aos aficionados do escritor: Montaigne foi “mon pére nourricier”(meu pai provedor), Rabelais, Racine, Rousseau, Boileau, Voltaire, Goethe, Byron, Victor Hugo, Balzac, Homero e tantos outros. Flaubert era um gênio ladeado de outros gênios, além de ser um exemplo e escritor favorito para Proust. Comumente, após um dia de trabalho ainda encontrava tempo para responder cartas à Louise, seu querido amor. Angustiado, exausto, furioso, dizia a ela que não conseguia melhorar seus escritos e chegava a passar uma noite inteira trabalhando para aperfeiçoar uma única frase.

Em “Madame Bovary” Flaubert entra no realismo, na descrição crua e nua de uma sociedade francesa predominantemente burguesa. Afasta-se de um Flaubert de “Novembro”, seu último livro romântico, para descrever a superficialidade, o vazio, o faz de conta de uma sociedade entretida em seus títulos aristocráticos e no desejo provinciano daqueles que chegarão à burguesia. Flaubert é em Madame Bovary um homem consciente da realidade dos fatos, dos fatos históricos de sua época. Delata nesse romance como ele tinha ideias de que os elementos reais estavam inseridos em sua escritura ficcional. Afirma de maneira contundente que: “não somos absolutamente livres para escrever isto ou aquilo. Não escolhemos nosso tema. Isso é o que o público e os críticos não entendem. O segredo das obras de arte está aí, na concordância do tema com o temperamento do autor.” Lembra ainda Vargas, que numa carta de Flaubert a George Sand, ele escreve: “Quanto ao meu furor de trabalho, eu o compararia à sarna. Eu me coço aos gritos. É ao mesmo tempo um prazer e um suplício. E não faço nada do que quero! Porque não escolhemos nossos temas, eles se impõe”.

La Belle epoque foi sem dúvida, uma expressão histórica na França, na Paris que se estremece com seus fatos políticos, sua literatura em ebulição e sua III República conservadora. Flaubert vivia isso no sangue e, Mme Bovary representa não só um personagem, mas uma descrição de uma época, uma elitização da sociedade. Os dandis, o esnobismo parisiense e o lujo do feminino. José Maria de Areilza em seu livro “Paris de la Belle époque” nos lembra que aquele momento era de luxo, prazer e desenfreio. Trouxe uma evolução da arte e da cultura, mas que na realidade aquela etapa histórica foi belle somente para poucos.

Acrescentando a esses fatos, Leda Tenório da Motta, doutora em Literatura pela Universidade de Paris e professora da PUC/SP consegue sintetizar o clima interno e a situação externa vivida por Flaubert: ”O resultado e a vacuidade de tudo, já antes do tolicionário, onde tudo se porá entre aspas. Vacuidade dos deuses em Saint Antoine e Salambô; do casamento e da paixão amorosa vivida fora do casamento em Bovary; das paixões políticas na Education; das doutrinas científicas e de suas aplicações técnicas em Bouvard et Pécuchet…Por onde quer que se tome o Flaubert realista, leitor no entretanto de Goethe, como vimos, há percepção fáustica do abismo.(in Lições de Literatura Francesa, Ed. Imago).

Voltando ao livro de Vargas Llosa, “A orgia perpétua”, encontramos lá o sentido do título que usou para escrever sobre uma de suas paixões, Mme. Bovary ( a outra, diz Vargas, é Cuba). Escrever, para Flaubert, “uma entrega tão veemente e total como a de um coito —- era para ele, uma orgia”. Numa carta a Mlle. Leroyer de Chantepie, de 4 de setembro de 1858, escreve nosso autor francês: “O único jeito de suportar a existência é mergulhar na literatura como numa orgia perpétua”. Ainda explicando seu trabalho em outro romance —Salambô – Flaubert conclui: “por fim me veio a ereção, meu senhor, às custas de me açoitar e me masturbar. Esperemos a festa.”

A “festa chegou”, a festa é a obra clássica de Gustave Flaubert. Um homem que, quando criança tinha dificuldade em aprender e, o que hoje chamaríamos de dislexia (incapacidade específica de aprendizagem da leitura e, consequentemente, da escrita de origem neurobiológica). Aliás, J.P.Sartre tem uma obra belíssima sobre Flaubert, que a denominou de “O Idiota da Família – Gustave Flaubert de 1821 a 1857”, em três volumes, e publicado entre nós pela L&PM. Nessa obra, Sartre escreve: o homem nunca é um indivíduo; seria melhor chamá-lo de universal singular.”

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