Eu lhe amo meu filho! Amo de verdade, ainda que você não tenha idade para saber o que é verdade ou mentira. Amo muito, mas percebo desde o seu nascimento que sua fome e sua boca são oceânicas. Sabe, do tamanho do mar. Isso talvez seja o que os psicanalistas chamam de oralidade, oralidade primária. Coisa esquisita, vamos falar para todo mundo entender: tem gente que nasce com uma ganância, uma vontade de ter tudo, uma força truculenta para devorar o que vem pela frente. Logo ao nascer, desde pequeno, o “seio” da sua mãe é irrisório, menor, faltante, não lhe satisfaz. Ele chora, esperneia, fica praticamente louquinho. Louquinho não, fica louco mesmo! A experiência da primeira loucura, mesmo nas pessoas ditas sadias, é vivida na angústia da Falta, do não vir o que se espera. Vivemos sempre esperando tudo, de todos, sem ao menos perguntar se eles têm. É atávico, consequência da nossa condição de fragilidade e incompletude, nascemos em condições precárias de sobrevivência.
Pois então, diz a mãe em voz alta: “O que você quer meu filho, eu não tenho. Eu tenho o que lhe estou dando. Aprenda para o resto da sua vida que ninguém pode dar o que não tem! E outra coisa, não é nada contra você, é porque não tenho mesmo. O que tenho é esse “leite”,essa disponibilidade para dar amor, muito amor. Mas, sinto pena de você filho meu! Você vai sofrer muito se exigir a realização dos seus desejos, das suas alucinações. Está você agora, pela primeira vez vivendo a Falta do esperado. A Falta, meu querido, é claro que dói, machuca, faz a gente se sentir a angústia do desemparo. No entanto a Falta não mata, ela nos oferece um tremendo aprendizado: somos incompletos, imperfeitos, inclusive sua mãezinha que lhe ama tanto! Um dia caso você suporte e tolere, vai aprender que “taça de carente não transborda”. Aí quem sabe, você vai aproveitar o que tem e o que todas as outras pessoas e a vida lhe deram”.
Escrevo essa crônica numa viagem aérea. Por coincidência, leio uma micro crônica de Clarice Lispector que se chama “Desencontro”. É micro, ou mini, pois ela contém duas linhas. Olha que coisa maravilhosa, afinal é sempre nos pequenos frascos que moram as grandes essências! Escreve Clarice: “Eu te dou pão e preferes ouro. Eu te dou ouro mas tua fome legítima é de pão”.
O escritor realmente intui e revela certas verdades humanas como fazem os sonhos – eles falam de maneira condensada e metafórica!
Bom, associo agora, tudo isso que estou tentando escrever, com a realidade do mundo dito pós-moderno. Nunca o homem mostrou sua “alma canibal”. O primitivismo do funcionamento psíquico atual deixa a lamentar: estamos movidos a todo tempo pela voracidade desenfreada, por um vampirismo assustador, por uma necessidade desesperada de consumir, ter, acumular, usando todos os meios perversos para que isso aconteça. Somos humanos? Não, somos animais-humanos, é bom não esquecer esse detalhe. O homem se civiliza a partir da existência da sua animalidade, essa é a função da Cultura! Freud, o imortal Freud, um dia escreveu que a psicanálise poderia ser entendida como “a arte de domesticar as pulsões”. Claro que não é somente a psicanálise, mas todo o acervo cientifico e cultural.
No entanto, quando assistimos a truculência, a violência, a corrupção, o roubo institucionalizado, os homicídios cometidos pelas facções do tráfico, pelo despreparo das policias, e agora, pela justiça feita através das próprias mãos dos injustiçados, perguntamos? Civilização, domesticações das pulsões, avanços tecnológicos? O que paira sobre nossas cabeças nesse tempo de brutalidade primitiva? O que nos espera no futuro: o apocalipse do canibalismo?
“Eu te dou pão e preferes ouro”, Clarice deslizava essas palavras da sua caneta melancólica. O fato é que tem muita gente sem pão, e poucos com abundância de ouro. Essa é nossa história desde os tempos imperiais. Os adultos, os donos do Poder, os ricos esfomeados, aqueles que usam seus cargos e funções para enriquecimento desvairado, são adultos-bebês vorazes, canibais, egocêntricos e sem consciência da existência do Outro, sem generosidade, gratidão e solidariedade humana.Vamos ser gratos às nossas mães que nos deram o que tinham e não o que a avidez desejou. Voracidade não conhece gratidão; amor de mãe não preenche gula, alimenta o filho em suas necessidades físicas e emocionais, e isto já é muito. Gratidão às nossas mães!
QUEM
“Quem um dia dançou os pés de outro?
Todos os que dançam, todos
Apenas dançam os próprios pés.
Quem pensa na imortalidade do outro
E durante seu próprio sonho
Sonha com o sonho do outro?
Quem, no nascimento do menino humilde,
Pede sua coroação pelos reis?
Quem manda violetas ao pobre encarcerado?
Quem se sente poeta pelo que o não é?
Poema de Murilo Mendes.