Mário de Andrade, hoje!

“O resto não se conta, são carinhos de amizade, gente suavíssima que me quer bem, que se interessa pelos meus trabalhos, que me proporciona ocasiões, de mais dizer que o Brasil é uma gostosura de se viver. Vai mal? Acho que vai. Acho que vai e sofro. Porém sofrimento jamais perturbou felicidade, penso muito nos meus sofrimentos de brasileiro e eles fazem parte da minha felicidade do mundo. Que eu tivesse que escolher uma pátria de-certo não escolhia o Brasil não, eu, homem sem pátria graças a Deus. Tenho vergonha de ser brasileiro… Mas estou satisfeito de viver no Brasil. O Brasil é feio mas gostoso”.

Fragmento de um registro de viagem ao Nordeste em 1928, citado por André Botelho em seu livro:” De olho em Mário de Andrade, uma descoberta intelectual e sentimental do Brasil”. Editora Claroenigma, 2012.

A Feira Literária de Parati esse ano homenageou o nosso ícone da Literatura Brasileira, Mário de Andrade. Escritor, músico, ensaísta, professor, homem que está inteiramente associado ao Movimento Modernista no Brasil, liderando a inesquecível Semana de 22, em São Paulo. André Botelho, sociólogo, diz em seu livro acima citado que Mário de Andrade “tornou o Brasil mais familiar aos brasileiros. Um poeta, romancista, contista, cronista, fotógrafo, colecionador, pianista, professor e leitor inveterado, que um dia se definiu dizendo:” Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cinquenta”.

O Movimento Modernista no Brasil engloba vários aspectos na literatura. Segundo Antonio Candido e José Aderaldo Castelo, três fatos são ligados: “um movimento, uma estética e um período”. Surge em 1922, na Semana de Arte Moderna, em São Paulo, como uma repensar a literatura vinda do Naturalismo, do Parnasianismo e do Simbolismo e vai até os anos de 1945, do após guerra.

Mário Raul de Morais Andrade nasceu e morreu em São Paulo (1893-1945). Há no livro de Antonio Candido e José Alderado um retrato fiel de Mário, como “O artista moderno”. Os autores citam um perfil do poeta, de um modo sintético e significativo. “Ainda não vi sublinhado com bastante descaramento e sinceridade esse caráter primitivista de nossa época artística. Somos na realidade uns primitivos. E como todos os primitivos realistas e estilizadores. A realização sincera da matéria afetiva e do subconsciente é nosso realismo. Pela imaginação deformadora e sintética somos estilizadores. O problema é juntar num todo equilibrado essas tendências contraditórias. Contradigo-me. Erro. Firo-me. Tombo. Morrerei? É coisa que não me preocupa nem perturba. Em todos os períodos construtivos é assim. Pensemos em tudo o que se fez e desfez para que o avião se tornasse um utênsil da modernidade e a ópera chegasse a Núpcias de Fígaro e Tristão. Os clássicos virão mais tarde que escolherão das nossas engrenagens tudo o que lhe servirá, não para construir obras-primas ( que são de todos os períodos ) mas para edificar uma nova estesia, completa, serena, mais humanamente universal”.

A expectativa e esperança do poeta Mário parece que ainda ficaram a dever. Hoje, quase cem anos do grito modernista a nação brasileira continua feia, mas gostosa. Feia no animalesco, no primitivo modo de ser que ainda se baseia no patrão e no escravo. As elites minoritárias e a população carente majoritária mostram que, apesar do crescimento tecnológico, a mente do brasileiro continua imperial, voraz de um lado, e do outro, desesperada, com inflação galopante, dívidas que não mais podem ser pagas, ensino precário, faculdades financiadas a juros extorsivos, governo perdido em sua função política e humanitária. Vivemos um momento grave, difícil, delicado e até mesmo perigoso, mas crise foi feita para novas transformações, esperemos que sim!

Numa carta a Mário de Andrade, Carlos Drummond desabafa seu desconforto dizendo:” Não sou ainda suficientemente brasileiro. Mas às vezes me pergunto se vale a pena sê-lo,(…) O Brasil não tem atmosfera mental, não tem literatura; não tem arte; tem apenas uns políticos muito vagabundos e razoavelmente imbecis e velhacos”.

A atualidade do poeta Mário espanta mas não é novidade. Que época essa em que vivemos onde não existem brasileiros que possam criar uma nova ordem política, social e econômica? Será que estamos fadados a repetir o “senhor de engenho” e “seus escravos”, numa dupla patológica, sadomasoquista, alimentando-se uns dos outros em conluios mortíferos perpetuando o prazer de serem escravizados e o triunfo do escravizadores, corruptos, narcísicos por excelência e viciados na conquista da voracidade que imita o “carcará”: pega, come e mata?

“Tentação”
Poema de Mário de Andrade (1938)

“Eu fechei os meus lábios para a vida
E a ninguém beijo mais, meus beijos são
Como astros frios que, de luz perdida,
Rolam de caos em caos na escuridão.
Não que a alma tenha já desiludida
Ou me faleçam os desejos, não!
O que outrem prejulgara uma descida,
É subir para mim, elevação!
Vejo o Calvário por que anseio, vejo
O Madeiro sublime, “Glórias” ouço,
E subo! A terra geme…Eu paro. (É um beijo. )
A moita bole… Eu tremo. (É um corpo ) Oh Cruz,
Como estás longe ainda! E eu sou tão moço!
E em derredor de mim tudo seduz!… 


 

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