Psicanálise da vida cotidiana – “Nise – O coração da loucura” – 29/06/16

 A doutora Nise da Silveira nasce na cidade de Maceió-AL em 15 de fevereiro de 1905 e falece na cidade do Rio de Janeiro em 30 de outubro de 1999 (94 anos). Seus estudos começam no Colégio Santíssimo Sacramento, em Maceió. Seu pai foi jornalista e diretor do Jornal de Alagoas. De 1921 a 1926 estuda Medicina na Bahia, única mulher numa turma de 157 homens. Casa-se com o sanitarista Mário Magalhães da Silveira, seu colega de turma com quem vive até 1986.   

O trabalho de seu marido era dedicado à pobreza, à desigualdade, à promoção da saúde e prevenção da doença no Brasil. Em 1927, o casal muda-se para o Rio de Janeiro, onde Nise se dedica e se engaja no meio literário e artístico. Aos 27 anos é aprovada em concurso público e começa a trabalhar no Serviço de Assistência a Psicopatas e Profilaxia Mental no Hospital da Praia Vermelha. Durante a Intentona Comunista é presa por ler livros marxistas e levada para o presídio Frei Caneca (1936). É aí que tem um encontro singelo, afetivo e respeitoso com o escritor, seu conterrâneo das Alagoas, Graciliano Ramos, passando a ser um dos personagens citados no romance “Memórias do Cárcere”.

Depois é afastada do Serviço Público e vive na clandestinidade com seu marido, período que se dedica ao estudo do filósofo Spinoza, estudo que, como conseqüência, escreve um livro chamado “Cartas a Spinoza”. Em 1944 é reintegrada no Serviço Público e começa a trabalhar no Centro Psiquiátrico Nacional Pedro II, no Engenho de Dentro onde continua a trabalhar contra as técnicas psiquiátricas que considerava agressivas aos pacientes. Nessa ocasião é transferida pela Direção para o trabalho ocupacional, atividade menosprezada pelos médicos. Assim, funda, em 1946 a secção de Terapia Ocupacional. Cria alí, além dos trabalhos de limpeza e manutenção, os ateliês de pintura e modelagem com a  intenção de possibilitar aos doentes mentais reatar seus vínculos com a realidade através da expressão simbólica e da criatividade, revolucionando a Psiquiatria então praticada no país.

Em  1952 funda o Museu do Inconsciente, no Rio de Janeiro, um centro de estudo e pesquisa destinados à preservação dos trabalhos produzidos nos estúdios de pintura e modelagem. Vários artistas-pacientes criaram obras incorporadas à coleção da instituição, tais como Adelina Gomes, Carlos Pertuis, Emygdio de Barros e Octávio de Barros. Poucos anos depois, em 1956, Nise desenvolve um projeto – A Casa das Palmeiras, uma clínica voltada à reabilitação de antigos pacientes de instituições psiquiátricas. Chamo atenção porque  esse projeto é a célula mater do primeiro Hospital Dia no Brasil. Ao perceber, um dia, o contato de um paciente seu com um cachorro, viu ali o esboço de uma manifestação de afeto.

Daí resolveu incluir gatos e cachorros para que os pacientes cuidassem deles, experiência que mostrou um mistério  na vida psíquica dos psicóticos — a expressão da  afetividade embotada na doença psicótica. Essa experiência está narrada em um de seus livros – “Gatos, A Emoção de Lidar”, publicado em 1998.

Enfim, Nise da Silveira deixa um legado precioso à Psiquiatria e principalmente a seus pacientes, aparentemente desacreditados pelos tratamentos da época, tratamentos que se resumiam em lobotomia e convulsioterapia através do método de Cerlleti e Bini, o eletrochoque, e também a insulinoterapia e o cardiazol. Nise visualiza a importância do mundo interno psíquico e vê alí uma possibilidade de resgate através da pintura e modelagem e  da praxiterapia. Isso se torna revolucionário, pois  a partir de recursos psíquicos, ou seja, do que hoje chamamos parte neurótica dos psicóticos, entende-se a possibilidade de elaboração consciente e inconsciente dos conflitos internos.

Na época se corresponde com Jung e seus assistentes, tem incentivos dos mesmos e cria, desse modo, o recurso artístico como ferramenta terapêutica. Nise fotografou as mandalas, produtos da criatividade dos pacientes, e as enviou a Jung, que anotou a singularidade daquele registro e atribuiu-o à afetividade com a qual seriam tratados. Foi o início de uma relação que prosseguiu com visitas de Nise ao mestre, retribuídas pela acolhida de discípulos do psiquiatra suíço que vinham ao Brasil conhecer os trabalhos de Engenho de Dentro, como escreve Maria Cristina Fernandes, jornalista, no jornal O Valor do dia 3 de junho desse ano. Num depoimento colhido por Luiz Carlos Mello, segundo a jornalista, Nise definiu a lição dos hospícios: “Aprendi muito com os loucos e isto vem a atrapalhar um pouco o conceito de razão. Fala-se na fonte da sabedoria e na fonte da loucura. Mas elas não são duas. Não há fontes separadas, está tudo muito próximo. De vez em quando uma pessoa ajuizadíssima comete um ato de loucura que, felizmente, diz muito a ela própria sobre sua forma de viver.”

O que intuímos dessa narrativa sobre a pessoa e o trabalho de Nise da Silveira? O mundo psiquiátrico estava vivendo a hora da anti-psiquiatria em Londres, na Itália e na Argentina. As comunidades terapêuticas estavam se formando; o próprio hospital-dia, semi-internação, nasce com Nise; as teorias psicodinâmicas de Henry Ey na França iam além do biológico e das terapias tradicionais, a psicose e a parte psicótica de todos nós já começavam a serem vistas por Wilfred Bion, não necessariamente como doença e sim como Recursos Psíquicos frente ao desamparo excessivo do ser humano. Os mecanismos psicóticos eram formas de revelar a história secreta dos assim chamados “loucos”, e as Artes em geral externalizavam uma vida onírica que não poderia ser sonhada senão por mãos e pincéis e posteriormente pela fala, obstruída pelo Recalque, os mecanismos de negação, divisão e foraclusão.

Vejam uma declaração de Clarice Lispector, pouco conhecida como pintora, feita a uma tela sua chamada de “Explosão”: “quero escrever o borrão vermelho de sangue com gotas e coágulos pingando de dentro para dentro. Quero escrever amarelo-ouro com raios de translucidez. Que não me entendam pouco-se-me-dá. Nada tenho a perder. Jogo tudo na violência que sempre me povoou, o grito áspero e agudo e prolongado, o grito que eu, por falso respeito humano, não dei. Mas aqui vai meu berro me rasgando as profundas entranhas de onde brota o estertor ambicionado. Quero abarcar o mundo com o terremoto causado pelo grito.”…depois de pintada ficou olhando no espelho a figura que por sua vez a olhava espantada. Pois em vez de batom parecia que grosso sangue lhe tivesse brotado dos lábios por um soco em plena boca, com quebra-dentes e rasga-carne(pequena explosão)… Minha pintura não tem palavras, fica atrás do pensamento.”

Esse foi o trabalho que Nise nos despertou —- a linguagem antes do pensamento verbal e que é bem documentado no Filme de Roberto Berliner —  “Nise, o Coração da Loucura”.

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