Psicanálise da vida cotidiana – O Clarinete de Cecília – 09/05/18

A noite era de inverno, ao sul da França, num teatro nomeado de Claude Debussy, especializado em receber jovens instrumentistas, ainda desconhecidos do mundo profissional. Naquela hora, Cecília, uma jovem de 23 anos, alva em sua cor, seus lábios já desenhavam a musculatura própria de quem tinha uma bela embocadura para seu clarinete. Tocava em duo com um pianista, o Adágio do concerto de Mozart para clarinete em Lá maior e orquestra; era uma redução para dois instrumentos.

 

Da plateia, Jean logo se maravilhou com a ternura e leveza de Cecília como também a pureza de seu som, desde os agudos aos graves, parecendo que tocava para ele. Encantado, em estado de êxtase, Jean não só a ouvia atentamente, assim como passeava seus olhos ávidos por todo o corpo de Cecília. O que lhe deixava inquieto era o ar e facies de menina sapeca, seu vestido preto de alça envolvido por um chale próprio à temperatura do ambiente.

 

Era um Dante que se encontrava com Beatriz; um Werther de Goethe apaixonado por Lotte; era alguém alucinando que encontrara a pessoa dos seus desejos desde a infância. Era ela, teria de ser ela, afinal a vida só cabe quando flutua no ar o objeto do desejo idealizado.

 

Ao fim do Adágio, Cecilia faz um solo permitido pela partitura – ad libitum – e seus dedos passeando pelos agudos ao grave do fim da frase, Jean não suportou a caída de suas lágrimas e a certeza que após a apresentação a procuraria Cecília. Assim o fez, no entanto, quando se aproxima da bela jovem francesa, encontrando-a em um belo beijo com seu namorado, levando Jean a implodir numa raiva e ciúme profusos e num desencanto com a falência de sua alucinação.

 

Durante vários dias voltara ao teatro, mas Cecilia havia desaparecido. Só outra noite, num café, viu os namorados mais próximos um do outro revelando a profundeza e a fortaleza da relação amorosa.

 

Jean não dormia, não se alimentava, continuava a alucinar, perdia sua vontade de tocar seus estudos e, em seus devaneios e sonhos diurnos não se libertava do desalento e da evidência de que jamais poderia pensar em sua francesinha como projeto amoroso. A ausência do sonho era substituída pela presença constante em ouvir o Adágio de Mozart.

 

A saudade era sua forma de amar, a alucinação, seu recurso de resgatar a cena do teatro, o preto do vestido, o negro dos seus olhos amendoados, a brancura de sua tez e a leveza dos seus dedos como que acariciando o clarinete ao tocar a melodia alegre e triste que Mozart compôs para seu instrumento preferido – o Clarinete.

 

Às vezes a vida deixa aparecer a impossibilidade absoluta.

 

Carlos de Almeida Vieira – Médico psiquiatra, Psicanalista da SPBsb e da SBPSP (São Paulo), Membro da Federação Brasileira de Psicanálise –  FEBRAPSI e da International Psychoanalytical Association – IPA


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