Psicanálise da vida cotidiana – O poeta diplomata e sertanejo – 13/10/16

João Cabral de Melo Neto – O poeta diplomata e sertanejo

João do Recife, primo de Manuel Bandeira e Gilberto Freire, segundo Roniere Menezes, compõe o maravilho trio – Cabral, Vinicius e Guimarães Rosa, diplomatas que cantaram em versos e prosa a condição do Sertanejo. (O Traço. A Letra e A Bossa – Literatura e diplomacia em Cabral, Rosa e Vinicius – Ed.UFMG). Um Brasil excluído, atolado em sua carência primária: fome, falta de habitação, exclusão social, perseguidos mortos pelas “facas e espingardas”, além da exploração escrava da organização mafiosa dos Coronéis em conluio com o Governo.

Chama-me a atenção a origem de João Cabral, seu nascimento, descrito de maneira lírica, realista, religiosa e filosófica pelo próprio poeta. Ao vir ao mundo, o bebê Cabral traz em sua aparição, preconcepções de um homem que intui a condição existencial do animal humano. Em seu poema “Autobiografia de um só dia” contido em seu livro: “O Artista inconfessável”, para mim uma negação, pois a confissão é descarada ainda que numa linguagem rebuscada e simbólica, e canta em versos o “nascimento”, a chegada ao mundo penso, não somente dele, mas de todos nós.
“Os netos tinham que nascer no quarto dos avós”! Nada mais afetivo, lírico e sublime: um nascimento dentro de uma referência ancestral, mítica no sentido de acolhimento daqueles que são dos pais, são pais dos pais, e geralmente exalam a experiência e a sabedoria filogenética. João Cabral foi um “enviado” já após o seu nascer, intuindo a profunda condição da natureza humana: “nascemos eu e minha morte contra o ritual daquela Corte”. Lembro-me de um texto filosófico de Sêneca em seu livro “Cartas Consolatórias”. Quando acalentando Marta através de uma missiva, deprimida melancolicamente pela morte de seu filho, lembra : quando uma mãe dar a luz de um filho, anuncia sua morte.

O vir ao mundo, mesmo dentro de uma cerimonial familiar, num clima religioso, “minha mãe no quarto-dos-santos/ misto de santuário e capela”, não imunizava o menino Cabral de sentir ao sair do “útero paradisíaco”, o impacto da mudança de ambiente; a cesura entre o interno e o externo; a angústia da perda da gravidade. Clama em seu poema citado: “se soubesse o que teria/ de tédio à frente abortaria”. Mais adiante exclama: “de que nada de um homem sabia:/ que ao nascer esperneia e grita. Parido no quarto dos santos,/ sem querer, nasci blasfemando.” Como diz Roniere: nascia outro poeta gauche! A sensibilidade, a precocidade de uma alma de gênio, trazendo já em suas fantasias inconscientes a agrura e o prazer de nascer. Cabral termina esse premonitório poema denunciando um realismo forte, pontual, às vezes árido, seco, mas profundo em suas intuições de uma forma poética, diferente de Rosa e Vinicius. Seus versos finais emitem palavras e melodias ásperas, mas reais: “pois são blasfêmias sangue e grito/ em meio à freirice de lírios./ mesmo se explodem (gritos e sangue), de chácara entre marés e mangues.”

João Cabral estreia nesse poema autobiográfico, a beleza, a dureza, o “paraíso perdido, o susto do inédito, nascendo para um mundo nem sempre acolhedor. Seu arquétipo sertanejo já anunciava a secura, a frieza, a carência, a dor da dúvida da sobrevivência e um futuro quase descrente do sertanejo.
No entanto, esse mesmo homem “enviado de deus”, continha já em seu coração a intuição poética junto com a função social da arte.

Meu autor de referência para escrever esse pequeno e despretensioso ensaio, remete a pensar e sentir a alma generosa de Cabral, sua urgência em doar uma arte intrínseca, de uma forma afetiva, ungida por um sentimento de compaixão e generosidade para com seus irmãos sertanejos. O poema que nos emociona e nos faz lacrimejar, é o escrito sobre, ainda criança, que João Cabral vai reunir naquelas simples e sensíveis pessoas do Engenho para ouvir poesia, como diz, “em forma de alto-falante”. O poema é “Descoberta da Literatura” fazendo parte do conjunto de poemas “Infância e Adolescência”.

“No dia a dia do engenho,/toda a semana, durante,/ cochichavam-me em segredo:/ saiu um novo romance. E da feira do domingo/ me traziam conspirantes/ para que os lesses e explicasse um/ um romance de barbante.”…Embora as coisas contadas/ e todo o mirabolante/ em nada ou pouco variassem/ nos crimes, no amor, nos lances,/ e soassem como sabidas/ de outros folhetos migrantes,/ a tensão era tão densa,/ subia tão alarmante,/ que o leitor que lia aquilo/ como puro alto-falante,/ e sem querer, imantara/ todos ali, circunstantes/ receava que confundissem/ o de perto com o distante, / o ali com o espaço mágico…”

João Cabral já tinha em si uma das funções e compromissos dos Poetas: o compromisso de uma arte social. Cabral jamais poderia ser um poeta romântico. Ele foi e é o poeta da dissonância, da crueza da vida sertaneja, da dor da miséria e dos excluídos. Das pedras, das facas, da condição dos explorados nordestinos pelos donos das Usinas e Engenhos. Ah, se a política de educação e cultura do nosso governo pudesse ter o compromisso de ensinar e desenvolver o sentido estético, tanto da população excluída de cultura quanto aos nossos jovens universitários, que em sua maioria não têm recursos, interesses e apreensão do sentido estético, sublime e social das Artes.

Termino lembrando Otto Lara Resende: “A poesia de João Cabral é aquela joia, é o máximo que se consegue de beleza com o mínimo de material.”

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