O Tempo no Amor

Estevão era um menino de doze anos. Magro, estudioso demais, gostava já naquela época de frequentar às salas de cinema de sua pequena cidade. Há certas crianças, ainda que muito jovens, interessadas ou angustiadas com as questões inerentes da existência humana: nascimento, morte, guerra, perigos, incertezas, mistérios, amores, amores apaixonados, curiosidade pelos suicidas e muito medo de viver sem segurança. Os filme que Estevão tinha predileção, iam de grandes amores à vivência angustiante da época do “Filme Noir”, da “Nouvelle Vague. Estes ele adorava, talvez por questões identificatórias. Estou me referido à época de Mônica Vitti, Felini, Marcello Mastroianni, Brigitte Bardot, Jece Valadão, Tônia Ramos, e tantos atores e diretores que deixavam de lado o “final feliz” para mostrar a vida como ela é, no seu realismo e nos dramas existenciais, principalmente franceses, “a la filosofia sartreana”.

Pois bem, Estevão era e sempre foi precoce, mas no amor sua timidez revelava seus medos e anseios dos contatos mais íntimos de uma relação. No entanto era uma pessoinha tremendamente apaixonada, apaixonada pela garotas, pela beleza e os mistérios do Mar. Frequentemente tomava o bonde e ia para a avenida da praia, menos para tomar banho e mais para apreciar e meditar com seus olhos curiosos – o Mar. O oceano, esse gigante desconhecido, misterioso e infinito colocava Estevão diante da plenitude, do fim de tudo, do horizonte que nunca se soube a razão, termina na África. Sempre ele dizia aos seus amigos: “está vendo longe, muito longe, onde as cores marítimas se dissipam? Lá, do outro lado é a África. Um dia quem sabe vou nadando até lá!

Acostumado ao passeio dominical após a missa das 19hs, Estevão ia com seus amigos perambular na Praça das Bandeiras. Abrindo um parêntese: nessa praça, bem no centro, havia um coreto onde sempre a Banda da Polícia Municipal dava seus concertos. Das marchinhas gostosas, passando pelas valsas populares, a Banda totalmente de instrumentos de sopro, tocava canções românticas. Os garotos ficavam parados na calçada da praça e as garotas caminhavam em círculo por toda ela, e daí surgiam as paqueras e flertes.

De repente, Estevão foi atraído pelos olhos negros de Amanda, que passeava com quatro ou cinco amigas. Várias voltas foram dadas pelas meninas e o nosso “jovem existencialista” não se despregava dos olhos da jovem. Os olhares foram se aprofundando proporcionalmente às voltas; os sorrisos sutis confrontavam suas pupilas agudamente acesas. A timidez do nosso cinéfilo se dissipou e, como um milagre ele a chamou, perguntou seu nome e arriscou marcar um encontro para o próximo domingo. Logo pensou: sete dias de distância não sei se aguentarei. Ansioso, angustiado, medroso, sentindo suas pernas tremerem e o seu coração palpitar, voltou e disse: “Quarta-feira é feriado, pode ser na quarta? Encontro você na calçada do Grupo Escolar, perto da praça. A menina, abismada, mas desejosa, consentiu.
Os dias se passaram. A angústia de Estevão transbordava, deixava-o suado, ficava trêmulo e seu coração palpitava como se fosse sair pela boca. Não sabia esperar, não tolerava viver o dia a dia, queria o futuro já, a quarta-feira que se tornara eterna.

Sobressaltos em seu sono, pesadelos inapreensíveis, o tempo ficou gigante em sua extensão. Quanto mais desejava mais as horas demoravam a passar. Sempre gostou de ler na intimidade do seu quarto. Tomava um livro, não conseguia prosseguir, folheava outro, não se concentrava, até que tirou de sua estante “Angústia” de Graciliano Ramos. O inconsciente sempre nos trai de uma maneira saudável ou desconfortável. Não era hora de ler aquele livro, pensou. Levantou, saiu de casa e logo bateu à porta da casa de Ronaldo para um possível jogo de botão. Ainda era segunda-feira. O tempo do desejo não sabe esperar; o tempo da angústia exige medidas imediatas para não vivê-lo. Os dias foram passando, chegou a bendita quarta-feira, fatídica data do encontro. Dirigiu-se ao local combinado. Seus olhares panorâmicos procuravam sua amada, Amanda não aparecia. Perguntou às amigas, elas não sabiam de nada. O tempo fluia, a angústia aumentava, o medo tomou conta do nosso jovem, uma hora se passou e Amanda não foi. Nunca mais Estevão quis saber daquela menina. O ressentimento às vezes toma conta da alma de uma pessoa ferida e eternamente se transforma num tempo infinitamente repleto de ódio, rancor e vontade de vingança. Estevão era assim.

Nesse momento que escrevo lembrei-me de uma passagem de Marcel Proust em seu livro “Jean Santueil”, obra precursora da outra obra eterna —- “Em busca do tempo perdido”. Toda a história de um dos maiores romances da literatura universal estava já intuída e parte escrita em Jean Santueil. Acompanhem a questão do Tempo em Proust (tema permanente em suas obras):

“Quando estamos apaixonados, encontramos novamente este belo dom da infância de que todo dia venha a ser para nós o objeto de uma expectativa febril, o alvo plenamente desconhecido de todas as nossas esperanças. Cada encontro esperado, cada carta recebida estão sem cessar diante de nossos olhos, ao passo que achamos tão longas as horas inúteis que se desenrolam uma após a outra, sem nos livrar de uma só antes desse momento, o único que interessa. E isso acontecerá somente amanhã. Deus,quanto tempo vai demorar até lá! Como atiraríamos de bom grado no nada todo esse tempo para que o amanhã venha logo! E se isso pudesse acontecer logo? Por que não? Talvez não esteja longe. Saímos, porém em vão. Não, é preciso passar essas vinte horas sem ela, sem nada dela. Só amanhã. Hoje é um mundo terminado do qual não se pode tirar mais nada de bom, nem de interessante, não adianta mais sonhar com ele. Ah, caro amanhã, como te sinto perto de mim! Como desprezo o hoje, com que desdém melancólico, com que voluptuoso sentimento de minha superioridade, eu, para quem o amanhã, para quem até minha espera, meu pensamento sobre esse momento são algo que os outros não podem compreender. Adivinho todos esses momentos que o hoje me traz ainda sem piedade, um após o outro. Que a noite venha sem tardança cercar para sempre com suas muralhas gigantescas, dar uma configuração eterna e fugaz ao dia de hoje, filtrar lentamente sobre ele o seu negro dilúvio”. (Jean Santeuil, Marcel Proust. Editora Nova Fronteira, tradução de Fernando Py, pag, 59, edição de 1982).

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