Psicanálise da vida cotidiana – O vazio do nosso tempo – 15/11/17

Alva, clara, de olhos esverdeados, quando anda traz movimentos leves como se fosse um manequim. Graduada em Arquitetura mas nunca soube de fato o que almejava ser. Joga tênis e religiosamente comparece a uma academia de ginástica de modo obsessivo. A vaidade é uma virtude que ultrapassa o cuidado afetivo consigo mesma. Aliás, diga-se de passagem, se Alice tem algum afeto com ela mesma! Quando diante do espelho, objeto sem disfarces, sente-se defeituosa, feia, incompleta e mal feita de nascença.
 
Aos olhos alheios é uma jovem linda, corpo provocante, pernas longas, curvas perfeitas e um jeito de estrela de cinema. Pena que a moça não enxergue, ou melhor, só enxerga o que não. É o não ter, a sua angústia de existência. Estuda línguas, três: inglês, espanhol e mandarino.
 
Pergunto o que Alice pretende com isso! No dia a dia de sua estrada de vida, não trabalha, filha de pais altamente abonados, amigos e amigos somente para o consumo. Fica, fica, nunca namora, nunca estabelece uma consistência maior em suas relações. Às vezes, em seus solilóquios se questiona: “gosto de alguém?” Sente-se superficial. Na intimidade de seu travesseiro lhe vem uma tristeza, ainda que não compreendida, mas uma tristeza e uma sensação de “futilidade” e “vacuidade”.
 
Vive, consome, flutua como seus passos em mares mornos, sem cor, sem ondas turbulentas nem acalmias cálidas e belas. Alice é um personagem, vários personagens, ou como disse Luigi Pirandello: “Seis personagens em busca do autor”. Personagens as pessoas vivem é claro, mas refiro-me aqui de personagens como formas de encobrir a natureza de uma pessoa. Somos e temos vários personagens em nossas vidas, mas sabemos, ou quem sabe sabemos, que somos autores, responsáveis pelas várias facetas e funções nessa nossa existência. Alice não, Alice é perdida em si mesma, mesmo dentro da beleza externa e da aparente moça de classe alta, estudada, formada, socialmente presente na sociedade pós-moderna onde o ter substitui o ser.Essa minha Alice obviamente não é nem será a Alice do país das maravilhas. A minha Alice está perdida sem saber que se perdeu.
 
Outro dia, de súbito, teve uma crise de pânico! Que pânico foi o dela? O pânico do vazio de sua vida – a caída no buraco da vida liquida, amorfa, sem sentido e fadada a uma futura depressão. Depressão em sintomas mais objetivos pois deprimida ela já é sem saber.O que sempre me chama atenção nessa ninfeta é o desamor – a falta de amor por si própria (a autoestima imprescindível para suportar os trancos da vida) e a ausência de amorosidade por alguém. Os outros na vida de Alice são objetos, abjetos, não são pessoas. São “drogas” usadas para obtenção de prazer pelo prazer; não são parcerias que expandem a vitalidade e produzem a alegria de viver. O mundo pós-moderno se transformou num cenário da “drogadição” às pessoas, pessoas como drogas, além das drogas propriamente ditas. Viver drogado é um desespero do sentimento de abandono e da incapacidade de amar a si e aos demais.
 
É trocar a parceria por uma vida “autista”, falsamente independente e profundamente dolorosa.Alice não tem amigos, não tem “brinquedos de adultos” que dão uma tonalidade e consistência afetiva à sua vida. Alice é um caos em silêncio, um vulcão que nunca tem a ousadia de erupção para transformações fecundas e gravídicas.A minha metáfora (Alice) é a metáfora do risco que a juventude atravessa nessa época de uma vida narcísica, consumista, vazia e abortiva. Alice é a dor que tem urgência em ser atendida e acolhida.
 
Alice é a “insustentável leveza de ser”, é o grito de uma juventude perdida, sem referenciais, sem governo, sem ética e sem fé nesse mundo onde os valores éticos e humanos urgem serem resgatados.
 

 

Carlos de Almeida Vieira – Médico psiquiatra, Psicanalista da SPBsb, Membro da Federação Brasileira de Psicanálise –  FEBRAPSI e da International Psychoanalytical Association – IPA


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