Outro dia, Ricardo resolveu ir à livraria comprar um volume da Obra de Clarice Lispector “Laços de Família”. Comprou, saiu estonteante como toda pessoa que lê Clarice. Na realidade nosso personagem estava procurando um conto contido no livro e chamado – “A imitação da rosa”.
Diga-se de passagem, que habitualmente não é uma tarefa fácil ler Clarice.
Há os que vão consumir leituras e livros e quebram a cara. A nossa querida e inesquecível autora não é fácil de ler, quanto mais de se consumir. Clarice é profunda, inquietante, angustiada, leve, intrigante e tem uma escrita que sempre se volta para o cotidiano da vida. Também existem aqueles que querem conhecer, os curiosos pela alma humana. Aí se deleitam, esquecem o que reside ao seu redor e mergulham em questões existenciais alegres e tristes.
Clarice percorre as veias e artérias da nossa personalidade sem pestanejar, ou seja, sem se preocupar se o leitor vai ou não acompanhá-la. Se acompanhar, a leitura se transforma numa experiência emocional capaz de cutucar nossas vísceras, e como dizia um amigo: “Quem ler Clarice, no mínimo, sofre um pouco de labirintite”.
Pois bem, Ricardo comprou o livro, desceu a escada rolante e sentiu vontade de tomar um sorvete de creme com cobertura de frutas cítricas. Saboreando seu objeto de prazer, folheando o livro, olhando as pessoas no vai e vem de um shopping, teve uma ideia paradoxal: paguei R$ 6.30 por esse sorvete e R$27.00 pelo livro de Clarice! Quase cinco sorvetes por um livro, algo está errado, pensou.
O creme se esvai ligeiramente, é claro, um prazer transitório, efêmero e por demais caro. Uma bola ou cinco bolas equivalem ao preço de um livro, um livro. Um livro, como diz a apresentadora Lúcia Helena: “Uma escritora decidida a desvendar as profundezas da alma. Essa é Clarice Lispector, que escolheu a literatura como bússola em busca pela essência humana”. Algo está paradoxal. Não que eu seja nada contra o prazer de degustar um simples sorvete, mas por cinco bolas do sorvete eu compro a riqueza de reflexões sobre a mente humana, sobre o viver e capacidade de uma pessoa me oferecer insights preciosos sobre a vida, sobre a minha vida. Isso eu levarei por toda a minha própria existência!
O sorvete é um bem material, um objeto que produz um prazer físico e que se derrama do meu ser sem deixar rastros. Reflito agora acerca do consumismo, da sociedade pós-moderna orientada por uma tecnologia e uma politica direcionada ao Ter e não ao Ser. Penso na educação no nosso país do futebol, educação voltada para adquirir bens de consumo, riqueza material. Não se educa para pensar na existência; em melhorar as relações sociais; proporcionar politização dos jovens; redistribuir a riqueza e reduzir as diferenças entre dominados e dominadores; conscientizar para escolher políticos éticos e comprometidos com as questões sociais. O paradoxo é um sorvete ser quase o valor de um livro!
Ricardo se deprime. Depressão ante a percepção das contradições da vida atual. Com outras bolas de sorvete de creme com cobertura de frutas cítricas compraria “Infância” de Graciliano Ramos e com isso, adentraria no sofrimento de uma sociedade, ainda escravista, exploradora do dinheiro dos nossos impostos para uso próprio.
Hoje, inclusive, nossos jovens, mesmo nas escolas, não leem “Infância” no original, e sim uma adaptação de certos “escritores” pagos pelo Governo, adulterando os nossos clássicos como Machado de Assis, o próprio Graciliano, José de Alencar, Euclides da Cunha e tantos outros. Alegam que, como as palavras são difíceis e dão trabalho de pesquisar nos dicionários, eles simplificam. Meu Deus do céu, que cultura está se dando? A cultura vazia de significados humanísticos e existências. A cultura da preparação para um mercado de trabalho com fins consumistas e alienadores.
Ricardo não terminou o sorvete! Agarrou-se angustiado ao livro de Clarice e saiu seguro de que, aquela obra é transformadora em sua personalidade, e que, com 10 bolas de sorvete você poderia comprar até um livro de poemas de Carlos Drummond.