Paris em Chamas: o mundo em luto

 

“No meio do mundo faz frio/ faz frio no meio do mundo,/ muito frio. Mandei armar o meio navio./ Volveremos ao mar profundo, / meu navio. No meio das águas faz frio./ Faz frio no meio das águas/ muito frio. Marinheiro serem sombrio,/ pois minha provisão de mágoas./ Tão sombrio! No meio da vida faz frio/ faz frio no meio da vida./ Muito frio. O universo ficou vazio,/ porque a mão do amor foi partida/ No vazio”. “Prazo de vida”, poema de Cecília Meireles, em “Mar absoluto e outros poemas”.

Na noite de uma sexta-feira treze as luzes clareavam os céus e Paris. Seu belo estádio de futebol mostrava os passos e cadências dos jogadores a trocarem passes e dribles. Um verdadeiro bailado, acompanhado pelo prazer dos olhares, pela efusão de emoções dos torcedores. De repente, estrondos vindos de fora criaram um pânico e uma expectativa apocalíptica de terror e de vivência de mundo. Eram homens bombas, delirantes místicos oferecendo suas vidas a Alá, no protesto aos “Cruzados”.

Perto dali, um bar parisiense. Namorados trocavam beijos, bocas ingeriam bebidas, palavras mútuas eram partilhadas em conversas simples, sofisticadas e até intelectualizadas. Mais que de repente, balas, projéteis ejetados de fuzis e metralhadoras se espalhavam e atingiam as pessoas, parisienses e imigrantes que ali brindavam a vida, e “a vida não fazia frio”, ao contrário do canto de Cecília. Mais perto desse bar, uma famosa casa de shows, o Bataclan, mostrava um concerto de música pop.

Milhares de fãs presentes no êxtase de ver seus ídolos e nos embalos frenéticos do ritmo. Juntos alguns, bem juntinhos, beijando-se, comemorando o viver a vida. Casais de todas as idades, homens e mulheres solteiros, sozinhos, solitários ou não, em busca de um momento onde a vida é suportada e comemorada dentro de suas angústias existenciais. O prazer, os jogos, a brincadeira, a música, as artes, são ações de sublimação para que nosso existir suporte o peso, às vezes, da “insustentável leveza do ser”.

Repentinamente poucos homens, mascarados, dando o grito de guerra do seu “Alá”, e não aquele que o Alcorão prega no sentido de amor e de respeito à vida. Não, “morte aos cruzados, nosso povo dominará o mundo e destruiremos todos”. Rajadas de metralhadoras penetram no meio da multidão. Alguns sucumbem mortos; outros se escondem; muitos são feridos gravemente. O terror e o pânico se instauram numa verdadeira praça de guerra onde não existem oponentes, só perseguidores, agressores numa covardia desumana, bestial, bárbara, sustentada num “delírio de expressão religiosa” predominando o ódio, o rancor, a violência, a estupidez e a arrogância.

Feridos, dezenas de mortos, reféns dos terroristas. O mundo de perto começa a assistir, no inicio sob a impotência e prudência dos policiais; lá fora, tanto naquele bairro, na cidade Luz e depois no mundo inteiro através da mídia, o espanto, a revolta, as lágrimas corriam como um rio de águas ligeiras sem obstáculos.

O mundo fica sabendo, ver pelos vídeos, assiste as cenas trágicas no campo de futebol, na calçada do bar e em frente ao secular Bataclan.
Corpos mortos, lágrimas escorridas dos transeuntes apavorados, conversas telefônicas espalhadas pelo planeta, familiares angustiados, desconfiados e temendo parentes atingidos. O Presidente da República fala ao seu povo e ao mundo; os governos de outros países se unem na dor e acolhem “o universo ficou vazio, porque a mão do amor foi partida”.

Em outro poema, “Guerra”, nossa poeta maior canta: “Tanto é o sangue/ que os rios desistem de seu ritmo/ e o oceano delira e rejeita as espumas vermelhas… Tanto é o sangue/ que até a lua se levanta horrível,/ e erra nos lugares serenos,/ sonâmbula de auréolas rubras,/ com o fogo do inferno em suas madeixas./ Tudo é morte/ que nem os rostos se conhecem, lado a lado,/ e os pedaços de corpo estão por ali como tábuas sem uso.
…E as máquinas de entranhas abertas,/ e os cadáveres ainda armados,/ e a terra com suas flores ardendo,/ e os rios espavoridos como tigres, com suas máculas,/ e este mar desvairado de incêndios e náufragos,/ e a lua alucinada de seu testemunho,/ e nós e vós, imunes,/ chorando, apenas sobre fotografias,/ –tudo é um natural armar e desarmar de andaimes/ entre tempos vagarosos,/ sonhando arquiteturas”.

Lembro de Drummond cantando os versos da “Rosa do Povo” e do “Sentimento do Mundo; lembro Bandeira querendo “viver de Brisa no Nordeste”; lembro da figura íntegra do Papa Francisco, com sua singeleza, fortaleza, clamores por um mundo mais justo e menos primitivo; lembro também de Luiz Ruffato e suas “Flores Artificiais; lembro de Dante descrevendo sua descida ao “Inferno”; lembro que já estamos na terceira guerra mundial.

Mas lembro também da capacidade humana de criar na dor, de dar outros arranjos de vida quando a catástrofe se aproxima, e de saber que a bandeira da nação francesa é tricolor: vermelho do sangue e das guerras; azul da esperança e do bom senso, e do branco da paz. Estamos todos tricolores nessa hora, somos todos imbuídos de um sentimento maior.

Suportar a dor, conviver com ódio sem querer matar, e pensar alternativas sadias para enfrentar o “fundamentalismo mortífero” e o “populismo enlouquecido”. O luto não é só da França é também de todos nós.

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