Relatividade da Mulher Amada

Diz o poema, Relatividade da Mulher Amada, de Murilo Mendes: “Eu gosto de você com uma força bruta que não entendo bem. Gosto quase tanto como de mim”.

Mas que pena você não ser também minha filha. Que pena você não ser minha filha, minha irmã e minha mãe, [tudo ao mesmo tempo]”.

O poema de Murilo Mendes, um dos maiores poetas modernistas do Brasil é estranho, misterioso e cheio de metáforas significativas. Talvez tenha razão quando diz( Murilo Mendes)” Viva eu, que inauguro no mundo o estado de bagunça transcendente”. É verdade, olhando esse poema de duas estrofes, que mostra a impetuosidade pulsional e apaixonante do ser humano, Murilo Mendes não escreve só dele, mas denuncia o “desejo canibal” que Affonso Romano de Sant’Anna descreve minuciosamente em seu livro: “O Canibalismo Amoroso”. Os mineiros que se entendem!
Pois bem, logo no título é dito da relatividade, da relatividade da mulher amada ou da relatividade da satisfação dos desejos? O amor que deseja tudo, o amor que fica cego para “interdição”, é essa “força bruta que não entendo bem”. Entende! O poeta intui que fala das pulsões de vida, das pulsões sexuais, que podem se transformar em pulsões de morte, como queria Freud e seus seguidores. Não pretendo “psicanalisar” o poema nem o autor, mas posso retirar dessas duas estrofes, algo que me remete a pensar no “Canibalismo Amoroso”, no ímpeto (força bruta sem limites) que brota dos esconderijos do Inconsciente que não conhece nem aceita os dados da Realidade. Realmente, Murilo tem razão em falar de relatividade, mas como ele se diz “uma bagunça transcendente”, vejo que o poeta apreende a força dos instintos, das pulsões que nega o interdito e deseja tudo e todos, “todas as mulheres do mundo”. O pai é sempre o excluído, o terceiro é sempre um conflito na dinâmica edipiana.

Recordo-me, nesse momento das lamentações de Proust quando perde sua Albertine, metáfora da perda das mulheres (homens?) do universo; metáfora da dificuldade de elaborar a separação de sua mãe querida e amada, que quando lhe negava a presença ou um beijo na hora do dormir, o infante Marcel não suportava sua solidão necessária. “Gosto quase tanto como de mim”, escreve Murilo, dando uma pista excelente: o amor-próprio, o narcisismo é um direito de todos, a não ser quando ele se transforma em arrogância, autossuficiência e tripúdio aos semelhantes. Porém, o amor que é descrito no poema tem uma finalidade: nada lhe faltam, todas as mulheres. Sabemos que “todas as mulheres” é uma expressão, aqui, poética, que esconde a voracidade e ambição que são o ter tudo como substituição, como idealização de um “objeto onipotente”, “uma conta bancária que nunca se esgota”, uma satisfação que jamais pode tolerar a “Falta”:”Que pena você não ser minha filha, minha irmã e minha mãe”.

Murilo Mendes nos coloca a questão da plenitude, da perfeição, da quantidade e não da qualidade afetiva do amor. Essa “força bruta” que ele metaforiza diz respeito a um “animal humano” não civilizado; uma pessoa ou pessoas que não conhecem a sublimação da pulsão oral, canibalística, própria daqueles que consomem os objetos e os outros como verdadeira Drogadição. Aliás, no mundo atual é notório como o maior vício, a maior adição, não é às drogas, e sim às pessoas. Estamos no terreno do Ter e não do Ser. “Eu gosto de você com uma força bruta que não entendo bem” é a apreensão pelo Poeta, de quanto é forte e imperiosa a vontade de ter tudo, de tudo conseguir mesmo que seja sob forma de uma avidez viciosa.

Em outro poema, “Limites da Razão”, Murilo Mentes já introduz na primeira estrofe, aspectos de impulso demoníaco quando escreve:” Atrás do meu pensamento/ os demônios destroem as meninas que eu gostei,/ fazem com o movimento e o espírito delas/ um samba pros outros dançarem”.

O amor quando entende que o amado é uma posse; o amor quando se manifesta de uma maneira exagerada, mata o próprio ato de amar. É um amor que destrói o Amor. Vejo em tudo isso uma agonia, um desespero, uma aflição resultante da dificuldade de tolerar a “solidão necessária”. Somos filhos do desamparo, da perda da completude ao nascer, e lutamos toda a nossa vida, tentando resgatar esse Outro que jamais teremos. Freud e Lacan escreveram páginas e páginas, no sentido de mostrar que o Homem é uma criatura, por natureza “castrada”, e é nessa limitação que há possibilidade de uma sobrevida criativa. Somos filhos do “grande naufrágio”! Com o nascimento algo de nós afundou ao mar sem retornar, e o que nos resta é recolher os pedaços do desastre e nadarmos até a praia. Deprimidos seremos se, em vez de “tirar proveito de um mau negócio”, ficarmos lamentando as faltas, as limitações e, para ser mais preciso, cultivar o Ódio à própria origem. Parafraseando o Poeta, a relatividade não é só da mulher amada, mas de todos nós.

Em 1959, Murilo Mendes escreveu um pequeno ensaio: “A Poesia e o Nosso Tempo”. Lá ele diz:” Nossa época, nascida sob o signo do relativismo, se distingue em boa parte pela flutuação e instabilidade das ideias. Hoje é difícil, senão impossível, fixar um critério seguro no que se refere à validez de escolas e estilos literários”. Talvez por isso, que Manuel Bandeira o considerava “Um conciliador de contrários/incorporador do eterno ao contingente”.

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