Psicanálise da vida cotidiana – Um terno diálogo! – 30/08/17

Esperando um voo atrasado para São Paulo, eis que meu telefone soa e numa voz cadenciada, um tanto em altura de tenor, sinto uma alegria incomum em conversar com um amigo-irmão. Nossas conversas sempre são o que se chamaria na Belle Époque, uma inquietação profundamente existencialista.

Após risos e ternura em nosso encontro virtual, adentramos num assunto belo, sincero, cruel, verdadeiro e às vezes assustador – Temos ainda tempo para o quê nessa vida?. É óbvio que a conversa, pega de surpresa, insere questões da mortalidade e da finitude! Lembro de J. L. Borgesem seu poema “O Cego”:um lampejo me toca/ teu cabelo antevejo/se ora de cinza ou ainda de ouro, ignoro /repito que o perdido foi somente/ a inútil superfície das coisas.

Na papo telefônico chegamos até planejar um encontro um tanto sistemático: formarmos um pequeno grupo para pensar assuntos existenciais, um grupo de cinco no máximo (mais do que isso é multidão, lugar onde pululam ciúme, inveja, competição e atitudes arrogantes de saber).
Ricardo é o nome do meu querido amigo. No decorrer temporal do telefonema, as inquietações e provocações sadias de pensar iam tomando forma de um diálogo, e não de duas pessoas preenchendo tempo com evacuações verbais para livrar o aparelho mental de entulhos de “inútil superfície das coisas”. Ato contínuo, Ricardo dizia uma coisa sábia: “a esta altura é preciso ser seletivo com o tempo e com as pessoas”. Respondi de imediato que conosco também! Devemos cuidar da nossa ânsia pela curiosidade criativa e ler e reler questões filosóficas, literárias, psicanalíticas, econômicas, ampliando sempre nossa formação humanística.

Sorrindo e sofrendo com aquela conversa, lembrei mais uma vez do meu querido Borges quando sempre afirmava com veemência: o mais importante não era ler tanto, era reler sempre. Nesse instante, suportando a loucura de sons dissonantes das pessoas aguardando seus voos.

Ricardo exclama: vamos selecionar alguns fragmentos de obras clássicas e conversar sobre elas de uma maneira jazzística, improvisadora (risos mútuos). Associei na lata: dois nordestinos são pessoas que têm em sua estrutura genética e artística a capacidade de: a partir de um “mote” desenvolver um diálogo repentista! Estávamos contentes e muito íntimos, o que prova que a distância espacial não dissolve a consistência afetiva – “alone-together” diz o título da canção jazz-standards.

Que satisfação ter no mundo de hoje uma relação (raríssima) que cultiva a beleza do contato humanístico. Atualmente não é incomum a cultura das relações de droga-adição entre as pessoas, e não de momentos enriquecedores da nossa cultura. Aquele lindo momento, mesmo entremeado dos sons disrítimicos e esquizofrenogênicos de sala de espera de aeroporto, não dissolvia nem destruía um encontro fecundo entre dois amigos que se conheceram há uns trinta anos na Capital da República.

A vida não é um estado de felicidade, é um estado de contato”, fragmento da prosa poética de Clarice Lispector em seu livro – “A Paixão Segundo G.H.

 

Carlos de Almeida Vieira – Médico psiquiatra, Psicanalista da SPBsb, Membro da Federação Brasileira de Psicanálise –  FEBRAPSI e da International Psychoanalytical Association – IPA


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