Sombras e realidade

A experiência da clínica psicanalítica mostra que a causa maior do sofrimento psíquico corre por conta do – mundo de fantasias – e não da realidade em si, objetiva e concreta. As maiores angústias e os maiores temores apontam para a criação da “experiência fantástica, fantasiada” antes mesmo que aconteça a experiência de fato. Ou seja, o maior pavor é ficcional, proveniente dos enganos de percepção, do excesso de imaginação. Prova disso é que, quando acontecem de fato as vivencia dolorosas, nossa mente tem mecanismos de adaptação e de capacidade para tolerar a dor, por maior que ela seja, e ainda elaborá-las.

Hoje espero que o leitor atente para o fato de que, desde criança criamos um mundo de “mentiras”, “enganos” e “sombras”, até que possamos exercitar a diferença entre imagem real e imagem fantasiada dos objetos e pessoas. Um ciumento patológico é capaz de enxergar alucinações e histórias para provar que está sendo traído pela pessoa querida; um fóbico é capaz de inventar que o elevador vai cair se ele entrar; uma pessoa profundamente desconfiada, qualquer dúvida ou incerteza que tenha, cria um mundo imagético de perseguição. Centenas de exemplos estariam à nossa observação para estudarmos como a mente se engana, quando experimenta estados emocionais intensos, e mesmo quando ainda jovem, digo, a mente infantil, precisa exercitar e discriminar a fantasia da realidade. O crescimento psíquico pode ser medido pela capacidade que temos de saber o que é “engano” e o que é “verdade”. É claro que não me refiro aqui à verdade última das coisas, pois essa é inatingível.

No Livro VII de “A República de Platão” ( Ed. Sapienza,2005, São Paulo) encontramos uma bela metáfora, a “metáfora da Caverna” que nos inicia na possibilidade de pensar sobre o que Sócrates chama de “ instrução e ignorância”. Diz Sócrates num diálogo com Glauco: “Imagina homens numa morada subterrânea, em forma de caverna, com sua entrada aberta à luz; esses homens estão aí desde a infância, de pernas e pescoço acorrentados, de modo que não podem mexer-se nem ver senão o que está diante deles, pois as correntes os impedem de voltar a cabeça; a luz chega-lhes de uma fogueira acesa numa colina que se ergue por detrás deles… Assemelham-se a nós. E, para começar, achas (Glauco) que, numa tal condição, eles tenham alguma vez visto, de si mesmos e dos seus companheiros, mais do que sombras ( o grifo é meu ) projetadas pelo fogo na parede da caverna que lhes fica defronte?… Portanto, se pudessem se comunicar uns com os outros, não achas que tomariam por objetos reais as sombras que veriam?”

Ainda nos escritos de Platão, Sócrates continua nos ensinando um dos maiores fundamentos epistemológico da capacidade de conhecer os fatos da natureza e da mente humana, quando dialoga com Glauco “… E se o arrancarem à força da sua caverna… e quando tiver chegado à luz, poderá, com os olhos ofuscados pelo seu brilho, distinguir uma só das coisas que ora denominamos verdadeiras? Glauco responde: Não o conseguirá, pelo menos no início. Conclui Sócrates, magistralmente:” Terá, creio eu, necessidade de se habituar a ver os objetos da região superior. Começará por distinguir mais facilmente as sombras; em seguida, as imagens dos homens e dos outros objetos que se refletem nas águas; por último, os próprios objetos.”

Caro leitor, que bela metáfora para nos alertar dos nossos “enganos da vida”! Nascemos, imaginamos, nos confundimos, trocamos as sombras pelas verdades, temos dificuldades de enxergar o sol em sua própria morada. Precisamos realizar que, por motivos emocionais de medo, insegurança e temor, criamos nossos fantasmas e sofremos em demasia com eles. A sábia lição que nos ensinam os filósofos, aqui, nas palavras de Sócrates e de Platão, nos prepara para uma vida menos aflita e dolorosa. Os antigos pensadores enfatizavam que uma boa educação é aquela que ministra filosofia, literatura, música, esporte, poesia, ética e política.

Que saudade dos colégios de antigamente, principalmente até 1963 (antes do Golpe Militar) que nos ensinavam os conselhos dos grandes mestres! Que lástima que os governos e empresários dos tempos modernos e atuais, desenvolveram uma Escola que o fim maior é “ensinar para preparar para os vestibulares” (empreendimentos por demais lucrativos e não educacionais), e não uma Escola que prepare as crianças e os jovens para a vida.

Termino hoje com um profundo pensamento do meu querido escritor e poeta argentino, Jorge Luis Borges, dito em artigo seu, “Borges les dice a los jóvenes lo que aprendió, Jornal La Razón,31/5/85,citado no livro “Dicionário de Borges”, de Carlos R. Sortini, sobre o tema Realidade:

“A realidade não é somente aparência, mas sentimento e também imaginação, e o mundo não é um caos, mas um labirinto, um cosmo que se oculta, e temos a tarefa de descobri-lo.”

 

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